Como o imaginário dos bois Caprichoso e Garantido inspira gerações e mantém vivas as tradições da infância dos amazonenses
por Bruna Pelegrino – Pesquisadora e gestora do CRAB Educativo
Parintins além do festival
O CRAB Educativo passou alguns dias mergulhado na riqueza cultural de Parintins, no Amazonas, convidado pelo Sebrae do Amazonas. O convite surgiu a partir de um projeto do Sebrae Nacional, que busca incentivar os artistas locais a expandirem sua criatividade para além do famoso Festival dos Bois, estimulando o empreendedorismo cultural e a permanência dos talentos em seu território de origem.
O Festival Folclórico de Parintins é realizado anualmente, sempre no final do mês de junho, e celebra a tradição dos bois, transformando a cidade amazonense em um grande palco para a disputa entre os bois Garantido e Caprichoso. Suas raízes estão ligadas à lenda do auto do boi, também conhecido como Bumba Meu Boi.
A festividade popular combina música, dança e fantasia para contar a história da morte e ressurreição do boi, unindo elementos do folclore indígena, africano e europeu. Desde 2024 o Festival de Parintins é reconhecido como Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Durante nossa imersão, acompanhada de uma agenda intensa e repleta de encontros significativos, foi possível perceber o quanto Parintins é um verdadeiro celeiro de criatividade, identidade e originalidade. Muito além da disputa entre Caprichoso e Garantido, a cidade revela artistas, mestres e brincantes que cultivam desde a infância a arte como forma de pertencimento e expressão cultural.

O boi que se brinca desde criança
“Brincar de boi” em Parintins é coisa séria. É uma prática que atravessa gerações e mobiliza toda a comunidade em torno de um imaginário coletivo. Por meio dos bois Caprichoso e Garantido, as crianças não apenas se divertem, mas constroem laços afetivos com sua cultura, reconhecem suas raízes e experimentam, desde cedo, o sentimento de pertencimento a um território.
Em Parintins, observamos um verdadeiro movimento de memória, afeto e inovação em torno da brincadeira dos bois — uma tradição que, mesmo diante dos apelos da tecnologia, como celulares e tablets, segue viva como um poderoso instrumento de autoafirmação cultural. Nos últimos anos, no entanto, tem se mostrado mais vulnerável. Por onde passamos, escutamos uma preocupação recorrente: o receio de que o imaginário simbólico da cidade se perca num mundo de transformações cada vez mais aceleradas.
No passado, as crianças tinham total interesse por essa tradição. Elas mergulhavam nas brincadeiras dos bois com naturalidade e encantamento. Mas eram impedidas de participar do festival oficial pelos próprios pais, preocupados com o ambiente tenso da disputa entre os bois.
Relatos locais indicam que, antigamente, Caprichoso e Garantido não podiam sequer se cruzar nas ruas: a rivalidade era grande, e os conflitos, inevitáveis. Mas as crianças não entendiam a gravidade do perigo desse cenário insistiam em pertencer a esse imaginário.
Diante da impossibilidade de participar diretamente do Festival dos Bois, surgiram em Parintins ramificações criativas e profundamente afetivas — como os mini bois e os bois mirins — que hoje ocupam lugar fundamental no circuito cultural da cidade.
Mais do que simples alternativas, essas iniciativas se tornaram poderosas extensões do legado dos bois Caprichoso e Garantido. Elas reafirmam que “brincar é, sim, um ato sério”, sobretudo quando se trata de preservar a alma e a identidade coletiva de uma cidade.
A brincadeira, afinal, é um fenômeno cultural em si mesma. Ela se configura como um conjunto de práticas, saberes e artefatos acumulados historicamente pelos sujeitos em seus contextos sociais. Representa um acervo simbólico comum, a partir do qual as crianças constroem experiências coletivas, criam relações e compartilham significados.
Como aponta Borba (2006), “brincar é um dos pilares das culturas da infância” — modos singulares de interpretar, agir sobre e transformar o mundo. Em Parintins, essa força criadora da brincadeira revela-se em sua forma mais potente: como patrimônio vivo, como arte popular, como futuro sendo tecido pelas mãos pequenas de quem sonha alto.


Mini bois: quando a brincadeira vira legado
Muitas das iniciativas que hoje movimentam o calendário cultural da cidade nasceram justamente da vontade das crianças de participar do festival. Historicamente, os pequenos eram impedidos de integrar as grandes apresentações por conta da rivalidade intensa entre os bois, que tornava as ruas um espaço de disputa e tensão. Foi nesse contexto que surgiram o Mini Caprichoso e o Mini Garantido, frutos da criatividade de dois irmãos nos anos 1990.
Com restos de materiais dos bois grandes, eles criaram maquetes interativas e bonecos, dando origem a um festival mirim com regulamento, toadas próprias e itens de disputa. Hoje, o Festival dos Mini Bois ocorre entre agosto e setembro e envolve crianças e adultos em um circuito cultural autêntico, onde a brincadeira amadurece, inova e transforma.
Como conta Adriano Mourão, atual diretor do Mini Caprichoso:
“Nós somos isso aqui que a senhora está vendo… a gente não era como as outras crianças que desejam ser heróis ou princesas… quando crianças a gente queria ser tripa de boi, sinhazinha…”
“A gente pegava uma caixa de papelão e pronto, já me imaginava no festival, sendo tripa de boi.”
E continua na fala do Neff Thales, atual diretor do Mini Garantido:
“Somos parte de uma herança cultural, inspirada no boi-bumbá, nas brincadeiras de fundo de quintal com os irmãos Francijuner e Francijaner e toda a molecada… a criançada… Transformávamos nossa imaginação em arte: a arte de brincar de boi-bumbá em miniatura. Hoje, o Mini Garantido é um brinquedo que me faz voltar à infância, relembrando os tempos de brincar de Mini Boi-Bumbá, quando transformávamos o lixo em arte.
O Mini Garantido é, e sempre será, o meu brinquedo de criança.”
Essas narrativas revelam como o imaginário infantil pode ser profundamente moldado pela vivência cultural local. Em vez dos super-heróis da televisão ou das princesas dos contos de fadas, o ideal de infância em Parintins é construído a partir da figura do boi-bumbá — personagem, que faze parte do cotidiano afetivo e simbólico das crianças. Esse universo lúdico estimula habilidades criativas, fortalece vínculos sociais e desenvolve um potente senso de coletividade.
A iniciativa dos Mini Bois é um exemplo de como uma brincadeira de criança pode amadurecer e se transformar em um espaço de inovação cultural. Muitos dos artistas que hoje integram os bois oficiais iniciaram sua trajetória nesses festivais infantis e, atualmente, retornam como voluntários, contribuindo para a elaboração das alegorias e elevando o nível da disputa ano após ano.




A cada edição, as maquetes ganham novas formas, os bonecos se tornam mais elaborados e as performances mais criativas — mantendo a competição viva e o espírito de pertencimento pulsando no coração das novas gerações.

Boi mirim: cuidado e continuidade
Os bois mirins são iniciativas idealizadas por pais e familiares, que, com apoio de voluntários da comunidade, confeccionam figurinos, constroem alegorias e organizam os ensaios. Essa iniciativa nasceu do desejo dos pais de manter seus filhos próximos da tradição em um ambiente seguro.
Atualmente, Parintins conta com três bois mirins: o Mineirinho — o pioneiro, criado na década de 1970 —, o Tupi e o Estrelinha. Embora cada um tenha seu nome próprio, apenas o Mineirinho mantém vínculo afetivo e estético com o boi Caprichoso, enquanto o Tupi e o Estrelinha preservam uma postura neutra em relação aos bois oficiais.

Aqui, o brincar é levado a sério: as crianças aprendem, desde cedo, a valorizar a cultura local por meio do universo simbólico do boi-bumbá, desenvolvendo identidade e pertencimento enquanto desfilam com orgulho e entusiasmo.
Tivemos a oportunidade de acompanhar e participar do ensaio do item vaqueirada. Nele, crianças entre 5 e 11 anos assumem o papel de vaqueiros e condutores de estandarte, com energia contagiante. Os ensaios são verdadeiras celebrações — música alta, passos coreografados e uma imaginação que transforma o espaço em uma grande cavalgada festiva. É tudo tão autêntico que nos remete, inevitavelmente, às nossas próprias memórias de infância.

Assim como os Mini Bois, os Bois Mirins fazem parte do calendário oficial de festividades da cidade, sendo os responsáveis por abrir simbolicamente o Festival de Parintins a cada ano. Até recentemente, o evento ocorria uma semana antes do festival principal, aproveitando o público já presente na cidade. No entanto, neste ano, por decisão da prefeitura, a apresentação foi antecipada em duas semanas, o que gerou frustração entre os idealizadores. Segundo eles, a mudança comprometeu a visibilidade e o alcance do evento, especialmente por não haver recursos para transmissões ou registros profissionais em vídeo e fotografia — um contraste com a estrutura dos bois maiores, que ainda conferia prestígio indireto ao circuito mirim.
Caprichoso e Garantido: educação, arte e território
Os bois-bumbás Caprichoso e Garantido também desenvolvem iniciativas voltadas à formação das novas gerações, reafirmando o compromisso com a continuidade de suas tradições culturais. Um exemplo significativo é a reinauguração da “Escola de Artes Ir. Miguel de Pasquale”, ligada ao Boi Caprichoso, que ocorreu justamente durante a semana da nossa visita. Fundada em 1997, a escola foi completamente reformada e, hoje, oferece atividades artísticas no contraturno escolar, com foco na integração entre arte, tecnologia e natureza — promovendo tanto a profissionalização de jovens quanto a sensibilização de crianças para a cultura local.
Já o Boi Garantido mantém a “Universidade do Folclore”, uma iniciativa multifacetada voltada à preservação e ao estudo do patrimônio imaterial do boi-bumbá, além de fomentar a produção cultural por meio de oficinas, cursos e vivências.


Essas iniciativas se encontram em dois pontos fundamentais: a dedicação em manter viva a tradição para e com as crianças e o protagonismo de adultos que, um dia, foram justamente essas crianças encantadas com o universo do boi e que, agora, se esforçam para garantir que esse legado não se perca diante das transformações contemporâneas.
É importante destacar que muitos dos idealizadores, professores e mediadores desses projetos pertencem a uma geração que, por meio da educação formal, conseguiu acessar universidades e ampliar sua visão de mundo. Hoje, eles retornam ao território com uma nova perspectiva: a de que o brincar pode ser também uma forma de aprendizado, inovação, formação profissional e desenvolvimento territorial.
Brincar é pertencer
Parintins é um lugar em que tradição e inovação caminham juntas e nos deixa um importante sinal de alerta: brincar é urgente. E permitir que nossas crianças possam brincar, com liberdade, significado e presença, é uma tarefa que exige compromisso de todos nós.
A experiência do boi-bumbá — especialmente nas brincadeiras entre Caprichoso e Garantido — nos mostrou como uma cidade inteira é capaz de construir legados, formar novos artistas e contribuir diretamente para o fortalecimento da cultura e da economia local, simplesmente ao valorizar sua identidade cultural e promover ações de arte-educação.
Em Parintins, brincar não é um ato isolado, mas uma prática que educa, transforma e mobiliza coletivamente.