Artesão baiano une catolicismo e candomblé em obras de arte
Com o dom de transformar elementos da natureza, Mestre Gerar cria esculturas em madeira e barro que homenageiam, ao mesmo tempo, santos e orixás.
Artesão desde a infância, José Geraldo Machado, mais conhecido como Mestre Gerar, imprime em suas mãos a sensibilidade e a técnica que dão forma a símbolos do catolicismo e do candomblé. Natural da cidade de Barra, na Bahia, localizada no encontro dos rios São Francisco e Rio Grande, ele produz imagens devocionais que impressionam pela riqueza de detalhes e pela capacidade de traduzir, em barro e madeira, a convivência entre diferentes tradições religiosas. Suas esculturas não apenas encantam pela estética, mas também se tornam narrativas visuais da fé e da cultura popular.
O talento surgiu cedo. Ainda menino, Gerar entalhava pedaços de madeira e esculpia suas primeiras imagens. O primeiro santo, o Bom Jesus, nasceu de um sonho de infância e marcou o início de uma trajetória que nunca mais se afastaria da arte. Desde então, o artesão transformou a prática em ofício, construindo uma identidade artística que alia devoção, memória e criatividade.
Com o passar dos anos, Gerar ampliou seu repertório e passou a explorar o barro como matéria-prima, consolidando-se como mestre santeiro. Essa busca por novas linguagens o levou a criar peças singulares, em que santos católicos e orixás dividem o mesmo espaço. O gesto, além de inovador, reafirma a força do sincretismo religioso no Brasil e traduz, em formas concretas, a pluralidade cultural que marca a identidade baiana.
Cada escultura carrega símbolos de resistência e de pertencimento, reafirmando o papel do artesanato como patrimônio vivo. Ao unir fé e tradição, Mestre Gerar preserva saberes ancestrais e projeta a cultura popular para novas gerações, mostrando que o trabalho manual é também um instrumento de empoderamento social.
Em 2022, Mestre Gerar foi um dos vencedores da 5ª edição do Prêmio Sebrae TOP 100 de Artesanato, que destaca os principais nomes do setor no Brasil. A conquista simboliza a consolidação de uma trajetória que une devoção, arte e identidade cultural, reafirmando o lugar do artesão como guardião de tradições e criador de novas possibilidades para a arte popular brasileira.
A arte de Mestre Gerar moldada pela terra e pelo fogo
O dia de Mestre Gerar começa cedo e sempre em sintonia com a fé. Antes de qualquer atividade, ele dedica alguns minutos às orações diante dos altares do Divino Espírito Santo e de Nossa Senhora da Conceição, devoções que guiam sua vida e sua arte.
É da própria paisagem de Barra que vem a matéria-prima de seu trabalho: o barro extraído do Rio Grande e o do São Francisco, cada um com características que dão forma e cor às esculturas. Essa relação direta com a natureza faz com que sua produção siga conectada às raízes culturais da comunidade de Barra, preservando tradições que atravessam gerações.
No ateliê, cada escultura é construída com paciência. As peças que unem santos e orixás levam em média dez dias de trabalho até ficarem prontas. Para finalizar, o artista utiliza pigmentos naturais: do São Francisco vem a tabatinga, que resulta em um branco intenso; do Rio Grande, o tauá, que após a queima adquire tons avermelhados. Esse modo de fazer, aprendido no contato direto com a terra e guiado pela espiritualidade, dá às obras de Mestre Gerar não apenas resistência e cor, mas também a marca de uma identidade que se renova a cada peça criada.
Veja algumas etapas do processo produtivo do artesão:
Modelagem
É nesse momento que a argila ganha corpo e identidade. Nas mãos de Gerar, as imagens surgem pouco a pouco, moldados com firmeza e delicadeza. As figuras transmitem movimento, como se estivessem em ação, os rostos carregam expressões intensas, e os mantos e saias lembram o estilo barroco, cheios de curvas e volume.
Pintura
O mestre utiliza engobes, tintas feitas de argila líquida colorida, preparados a partir de diferentes terras da região. As cores aplicadas reforçam a ligação da obra com o território e trazem símbolos que refletem tanto a tradição africana quanto a fé católica.
Forno a lenha
O processo se encerra no forno a lenha. É ali que o barro se transforma em cerâmica resistente e que a pintura se fixa de forma definitiva. O fogo sela a obra, dando-lhe durabilidade.
Em suas obras, Mestre Gerar une arte, fé e transmissão de saberes
Mestre Gerar não se limita a criar esculturas. Parte essencial de sua trajetória é o compromisso em compartilhar saberes. Na cidade de Barra, sua casa abriga o ateliê onde cria as peças e também o espaço no qual conduz oficinas e cursos voltados a adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade. Durante as atividades, ensina desde a preparação do barro até as etapas de modelagem e pintura, transmitindo não apenas a técnica, mas também valores ligados à identidade cultural e ao sentimento de pertencimento.
A espiritualidade ocupa lugar central em sua trajetória. Em sua propriedade funciona também o terreiro Pai Xangô das Cachoeiras, herdado de seu avô, que se tornou um espaço de fé e resistência cultural.
Essa vivência ampliou seu repertório artístico e espiritual, resultando nas esculturas dos orixás, mencionadas anteriormente, muitas vezes em diálogo com santos católicos. O resultado é uma produção que reflete o sincretismo religioso e evidencia o significado cultural de suas esculturas.
Mestre Gerar transforma sua arte em ferramenta de inclusão social e vivência religiosa, consolidando-se como referência na preservação das tradições afro-brasileiras.
Mestre Gerar expande sua arte para além da cidade natal
Em feiras, exposições e iniciativas voltadas ao artesanato brasileiro, as esculturas de Mestre Gerar não passam despercebidas. Sua arte se impõe pela grandiosidade dos traços e pelo diferencial da representação do sincretismo religioso que traduz a pluralidade cultural do país. Mais do que objetos de contemplação, suas obras despertam o interesse de compra de visitantes e colecionadores, fortalecendo a relação entre artista e comunidade.
O artesanato, nesse contexto, vai além da estética: é também economia criativa em movimento. Ao comercializar suas peças, Gerar não apenas garante renda própria, mas também reafirma o valor do trabalho manual como fonte de desenvolvimento local. Cada escultura vendida representa a circulação de saberes tradicionais e a valorização da cultura popular,
A presença digital amplia ainda mais esse alcance. Perfis em redes sociais, como Instagram e Facebook, funcionam como vitrine e canal direto de contato com interessados, aproximando o mestre de novos públicos. Essa estratégia rompe barreiras geográficas e permite que sua arte, dialogue com pessoas de diferentes regiões do Brasil. O digital, nesse caso, não substitui a experiência presencial, mas a complementa, multiplicando caminhos de acesso às obras. No site Artesanato da Bahia, é possível conhecer sua trajetória e visualizar peças disponíveis para compra.
Cada escultura de Mestre Gerar carrega narrativas de fé, resistência e identidade cultural. Ao circular em feiras, plataformas digitais e coleções particulares, suas obras perpetuam memórias e reafirmam o papel do artesão como guardião de tradições e agente de transformação social. No entrelaçar de barro, pigmentos e símbolos, o artista mostra que o artesanato é, ao mesmo tempo, patrimônio cultural e motor de empoderamento econômico.
Artesão conquista reconhecimento nacional com sua arte popular
O talento de Mestre Gerar conquistou reconhecimento nacional. Em 2022, ele foi um dos artesãos baianos premiados no 5º Prêmio Sebrae Top 100 de Artesanato, na categoria Artesanato Conceitual.
As imagens de santos católicos e orixás produzidas por Mestre Gerar chamaram a atenção pela intensidade das formas e pelo uso das tonalidades naturais das argilas retiradas das margens dos rios Grande e São Francisco. Com uma estética marcada por referências barrocas, suas peças foram reconhecidas não apenas pela qualidade artística, mas também pela forte ligação com a tradição cultural baiana. Para o artesão, o prêmio representa mais do que uma conquista pessoal: é também um reconhecimento ao trabalho de transmissão de saberes que realiza em Barra.
Em entrevista para o portal Licia Fabio, Gerar ressaltou que a premiação valoriza sua técnica de modelagem e o aproveitamento da matéria-prima local, mas sobretudo reforça o aspecto educativo e social de sua atuação. Ele destacou que compartilhar seus conhecimentos com os jovens da cidade é uma forma de preservar a cultura, transmitir valores e criar oportunidades de renda. “Este prêmio também é um reconhecimento ao trabalho que exerço com a comunidade carente de Barra. É passar o meu conhecimento para os jovens, através da arte, valores culturais e uma forma de gerar renda, mantendo viva a tradição que atravessa gerações”, afirma Gerar.
Esse reconhecimento nacional se soma à presença de suas obras em instituições como o Museu Afro Brasil, em São Paulo, e à circulação em plataformas digitais de venda. Assim, a trajetória de Mestre Gerar se consolida como exemplo de como a arte popular pode unir tradição, inovação e impacto social, projetando a cultura baiana para além de suas fronteiras.
Referência bibliográfica
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