A cultura popular e o lúdico artesanal

Escultura Cena do Cotidiano em Cerâmica do Jequitinhonha, de Rosana Pereira – modelagem em argila e pigmentos naturais.(foto: Xapuri Brasil, 2024)

 

Ao observarmos a longa história cultural dos brinquedos podemos perceber a forte ligação entre o prazer que temos com esses objetos e a sua universalidade. O exuberante repertório desses trabalhos testemunha como o recurso do lúdico tem sido usado como inspiração por diferentes culturas, épocas, materializados nas mais diversas técnicas e materiais.

Hoje, reconhecemos a potencialidade educacional dos jogos e, cada vez mais, utilizamos a gameficação como método de aprendizado. Essa longa história revela a fascinante sintonia entre o caráter lúdico como motivação inspiracional tanto para a produção artesanal como para o conhecimento.

Na Europa, as criações desses objetos brincantes surgiram primeiramente nas oficinas dos mestres dos ofícios. Em se tratando da leveza, de se saber brincar, o Brasil não poderia ficar de fora, a sua produção artesanal tem participado dessa escola com muita criatividade e atualizado esse olhar alegre sobre e a vida.

Todo objeto artesanal carrega em si uma ‘ludicidade’’. Ele sempre nos conduz para fora deles mesmos. Quem fez esse objeto? Como conheceu essa técnica? De onde ele ou ela vem? Várias são as possíveis respostas, mas e para a pergunta para onde vai o objeto lúdico? Só há uma resposta: ele nos leva de volta ao mundo da poesia do artesão, afinal o objeto está impregnado do seu olhar particular e da experiência coletiva de sua cultura. 

Pulando amarelinha, escultura de Mestre Dim (Foto: Museu Brinquedim, 2024)

 

A graça das misturas no artesanato brasileiro

A mistura entre as culturas de nossa formação vem construindo um jeito original de se estar no mundo, e essa é a nossa graça. Dentre os muitos atributos da ‘’’marca’’ Brasil, a capacidade de perceber de forma lúdica as diferentes situações da vida nunca nos abandonou. Mesmo quando, hoje, cada vez mais tomamos consciência dos danos provenientes do processo colonizador, ainda assim a ousadia do lúdico faz parte do caráter da inteligência nacional. 

A arte popular, com destaque para a sua produção artesanal, tem ampliado a sofisticação das narrativas bem-humoradas, cada vez mais aproximando o popular com a sofisticação da Arte Pop. De norte a sul o repertório artesanal tem contribuído para essa produção e diferentes técnicas têm sido utilizadas. 

O Nordeste construiu um estilo original. Os ceramistas materializam em 3 dimensões a irreverência crítica, a singeleza dos afetos e as crônicas dos cotidianos interioranos em seus trabalhos.  

Manuel Eudócio Rodrigues, o mestre Eudócio, nasceu na comunidade do Alto do Moura, bairro tradicional da cerâmica, na cidade de Caruaru-PE. Mestre Eudócio veio de uma família de ceramistas de peças utilitárias, portanto seu primeiro contato com o barro foi fazendo seus próprios brinquedos, um costume muito comum entre as crianças do interior. 

Família de palhaços feitos de cerâmica (Foto: Artesanato de Pernambuco, 2024)

 

O artesanato inventa mundos

Os objetos lúdicos importam tanto quanto a possibilidade de multiplicação de seus significados.  

O poeta pantaneiro Manoel de Barros nos ensina a exercitar esse olhar sobre o mundo.  Segundo ele, lúdico é o um processo de ‘‘criançamento’’. Manoel de Barros nos explica o lúdico vivendo, enquanto alguns artesãos nos explicam o lúdico fazendo. E nós aprendemos com a maravilhosa experiência de ter contato com toda essa sabedoria, que se finge de criança para esconder a eternidade dos grandes ensinamentos. 

O artesanato lúdico é capaz de expressar a sabedoria de um olhar que por trás da simplicidade esconde as mais sofisticadas narrativas e técnicas.  

a simplicidade não está na forma dos brinquedos, e sim na transparência do seu processo de produção… a verdadeira e espontânea simplicidade dos brinquedos não tem a ver com sua construção formal, e sim com a sua técnica. (BENJAMIN, 1993, pg. 251) 

Caixa de Festa do Mestre Dim (Foto: Mapa Cultural CE, 2024)

 

‘’A falsa simplicidade do lúdico na produção dos brinquedos esconde o desejo de recuperar o contato com o mundo primitivo, com os ofícios ancestrais do fazer artesanal’’.  (Benjamin, 1993, pg.246)

A organicidade das madeiras sugere formas escondidas e oferece a sua capacidade em absorver as tintas coloridas. “É justamente essa perspectiva exterior – a questão da técnica e do material- que nos permite mergulhar no mundo lúdico dos brinquedos”. (Benjamin, 1993, pg. 246)

 Antônio Jader Pereira dos Santos, o Dim, é um artista brincante cearense. Ele cresceu na periferia de Camucim no meio de uma família de sete irmãos. Era um lugar de muita festa e de muita brincadeira, o que certamente despertou o artista que ele viria a se tornar. Ainda menino, Dim fabricava seus brinquedos de madeira inspirado nos que a avó trazia das romarias. Eram bonecos articulados, carrinhos, barquinhos, dentre outros.

Carrossel de aviões do Mestre Dim (Foto: Mapa Cultural CE, 2024)

 

Jogando e aprendendo a jogar com a ludicidade do artesanato

O adjetivo ‘lúdico tem origem latina ludos, que remete ao divertimento dos jogos. O grande repertório criado pelos artistas populares tem revelado a sintonia entre a produção artesanal e a experiência divertida que temos com os jogos. Os jogos têm um caráter civilizatório, as disputas realizadas por meio deles funcionam como verdadeiros treinos para o ensino da convivência democrática. 

Time de Futebol de Zé Caboclo (Foto: Museu do Pontal, 2024)

 

José Antônio da Silva, o Zé Caboclo, nasceu em 1921 em Caruaru, Pernambuco. Zé Caboclo era filho de uma de louceira e desde criança, como era costume na época, modelava o barro para fazer seus próprios brinquedos. Foi esse seu caminho inicial para se tornar um dos mais conceituados bonequeiros  

do Alto do Moura. No final da década de 40, começou a acompanhar o mestre Vitalino na arte de moldar o barro e com ele participou do mais importante grupo de artistas populares do Alto do Moura. 

O artesanato como deslocamento, surpresa e humor 

A arte popular sabe lidar tanto com a surpresa, as mudanças de escala, c a simplificação das formas, a redução caricatural dos corpos e a exuberância das cores estouradas; como também com o jogo intelectual dos deslocamentos.  

Efigênia Rolim é uma artista, artesã das inutilidades, como ela se orgulha, cuja sensibilidade subverte a trajetória de papeis de bala e outras preciosidades urbanas e as transforma em belas surpresas. Com seu humor e a sua capacidade de ver beleza onde se acostumou ver lixo, Efigênia renova o nosso olhar para as coisas do mundo. A partir de muita criatividade e habilidade manual, começou a criar esculturas, objetos, figurinos, utilizando papel de bala como principal matéria-prima.

Foto da Mostra Vida e Obra de Efigênia Rolim e Hélio Leites
(Foto: Wagner Roger – MAC PR, 2024)

 

As criações de Getúlio Damado se tornaram Patrimônio Cultural da cidade do Rio de Janeiro. Como Efigênia, Getúlio possui um olhar de encantamento para as sobras da produção humana. Recolhe, recorta, cola e faz renascer personagens de onde só se viam restos. 

Nas obras de Getúlio os devaneios são tempos da lembrança da infância, de onde brotam cavaleiros, namoros na praça, brincadeiras de criança, carrinhos e bonecos. Reorganizam-se em corpos, cabeças e braços com fragmentos daquilo que já foi tecnologia (PESSOA, 2013, pg.43) 

Os dois no cavalo de Getúlio Damado (Foto: Novos Para Nós, 2019)

 

O objeto lúdico artesanal não se submete ao tempo cronológico e nem respeita a lógica do mercado, embora participe destes ele é capaz de produzir mudanças permanentes nas nossas sensibilidades. Esses objetos entregam mundos, carinho, capricho, beleza, humor, sensibilidade que não se compra e que nunca se descarta.  

‘’A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor.” (Barros, 2016, pg. 67) 

REFERÊNCIAS:

 

LIVROS:

  • APPADURAI, Arjun (org). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Eduff, 2008
  • CALVINO, Ítalo. Porque ler os clássicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007
  • BARROS, MANOEL. O livro das ignorãças. São Paulo: Companhia das letras, 2016
  • BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993

 

DISSERTAÇÃO:

 

RAMOS, Maristela Pessoa. Getúlio Damado e Roger Mello: conexões entre o campo da arte e o universo lúdico infantil. Rio de janeiro: UERJ – Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes, 2013

 

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