O Centenário de Ana das Carrancas

Trajetória e Legado

Por Mayara Fonseca

“O Rio que nunca secava”. Essa foi a imagem que Ana das Carrancas guardou ao ouvir pela primeira vez sobre o majestoso Rio São Francisco. Foi com essa esperança que ela e sua família saíram em busca de uma nova perspectiva de futuro em meio à seca, e fizeram de Petrolina um destino crucial e decisivo, que mudaria a trajetória de suas vidas para sempre.

Em 2023, celebramos um século de nascimento de uma das mais destacadas mestras artesãs brasileiras: Ana Leopoldina dos Santos, conhecida como “a dama do barro”, a Ana das Carrancas.

Trajetória

Nascida em Santa Filomena, município de Ouricuri, na divisa entre os estados de Pernambuco e Piauí, Ana das Carrancas aprendeu desde cedo o ofício de esculpir o barro com sua mãe, que também era louceira. Aos sete anos, moldava seus próprios brinquedos e mais tarde, peças utilitárias, como panelas e vasos, contribuindo assim para o sustento da família.

Em 1932, ela saiu de Pernambuco e foi com a família para o Piauí. Lá se casa mais uma vez com quem viria a ser seu companheiro para o resto da vida. Em 1954, de volta ao estado de origem, a família se estabelece em Petrolina. Ao chegar lá, mais uma vez fugindo da seca que castigava o sertão, enfrentaram um momento de extrema dificuldade, com a venda escassa dos produtos utilitários em cerâmica, que Ana comercializava nas feiras. Já seu marido, deficiente visual, era pedinte nas ruas.

Ana, com sua intensa fé, pediu a Deus que ajudasse a enfrentar esse momento tão delicado. No dia seguinte, ouviu de um barqueiro a história da carranca, objeto que ficava nas proas dos barcos de ribeirinhos comerciantes. As carrancas eram uma forma de espantar os maus espíritos e garantir aos barqueiros uma viagem em segurança.

Para Ana, aquela história era um sinal de Deus aos seus pedidos. E saiu para caminhar, acompanhada do marido, pelas margens do Rio São Francisco. No trajeto, descobriu um pedaço de terra que imaginou ser boa para a confecção de peças de argila. Ana, então, sem nunca ter visto as tais carrancas, passou a cria-las, baseadas na sua imaginação. Nesse momento, nasce uma grande artesã brasileira.

Como tantos artistas no início de carreira,  enfrentou a resistência e o descrédito daqueles que a cercavam. Sobretudo nas feiras de rua, onde o público não compreendia a grandeza de sua arte e suas peças. Até que um jornalista, com os olhos treinados para a arte popular, identificou que naquele momento e naquele local que estava nascendo uma artista que faria história. Não estava errado.

Com sua fé, pediu por um milagre: que seu marido não precisasse mais pedir esmolas nas ruas, e passou a homenageá-lo furando os olhos de suas carrancas, como uma forma de demonstrar afeto e gratidão ao seu companheiro de vida e parceiro no barro, pois ele a ajudava a amassar e moldar as peças.

Clique aqui para ver o documentário

 

Legado

O centenário de nascimento de Ana das Carrancas nos remonta a sua incrível trajetória. Um centenário que nos conecta com a força criativa que emana do barro, das águas e das transformações. Através de suas mãos habilidosas, o barro ganhou vida e as carrancas se tornaram símbolos importantes da nossa cultura.

Ana usou sua arte para se transformar e mudar realidade de sua família. Ela se tornou peça fundamental nesse quebra-cabeça imenso de artesãos e artistas populares brasileiros que retratam nosso cotidiano, através dos olhos da alma e das habilidades ancestrais. Ana costumava dizer que seu sangue era negro, mas sua alma, era de barro.

Reconhecimento

Em setembro de 2000, é inaugurada a sede do Centro de Arte e Cultura Ana das Carrancas, em Petrolina. O espaço é administrado por suas filhas, Maria da Cruz e Ângela Lima. Ana das Carrancas também recebeu, em 2006, o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco.

Em outubro de 2008, aos 85 anos, Ana morre, mas sua trajetória e legado permanecem vivos na galeria de grandes mestres do nosso país. Em 2009, a Galeria de Artes Ana das Carrancas foi inaugurada em Petrolina. Em 2020, recebe da Assembleia Legislativa de Pernambuco o título de Patrona da Arte Ceramista de Pernambuco.

Em 2023, como parte da celebração de seu centenário, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) preparou uma série de eventos, exposições e um documentário sobre Ana das Carrancas. Suas filhas, Ângela Lima e Maria da Cruz, também participaram dessa homenagem. Em 25 de agosto, o CRAB recebeu Ângela e Maria para participarem de uma roda de conversa, o Papo CRAB, em que passado, presente e futuro da arte de Ana das Carrancas foram reverenciados.

O centenário de Ana das Carrancas é um ótimo momento para nos fazer refletir sobre a profunda conexão entre a arte da mestra artesã e a essência do Brasil. E nos inspira a valorizar e preservar a rica história cultural que ela contribuiu para o país. Sua dedicação à arte ceramista e sua habilidade singular deixaram um legado duradouro, enriquecendo nossa identidade cultural e emocionando gerações. Pelas formas esculpidas por suas mãos, Ana das Carrancas capturou a alma do povo que vive à beira das águas do Rio São Francisco, reafirmando a força de sua arte em conectar passado, presente e futuro.

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