Artesã Ângela Morais pelos olhos de Sérgio Matos: o design vernacular carrega tradição e história (Foto: Acervo Pessoal Instagram @sergiojmatos, 2024)
Imagine esta cena: concentrado em seu ateliê, cercado por madeira, couro e linhas curvas, Sérgio Rodrigues desenha uma cadeira. Esta peça, no futuro, vai se tornar símbolo do design brasileiro. Mas o que poucos percebem de imediato é que, por trás do design modernista, está presente um mergulho profundo nos saberes populares: a marcenaria tradicional, o jeito brasileiro de habitar os espaços. Essa fusão entre o olhar do designer e as raízes culturais do país revela a essência da brasilidade, um encontro entre tradição e contemporaneidade, entre o Brasil que se reinventa e o que nunca deixou de ser.
O que é Design Vernacular?
Os abridores de letras são artistas populares que dominam a técnica artesanal de pintar nomes e frases em barcos da região amazônica. Essa prática vai além de uma simples decoração: é uma expressão cultural rica em história, criatividade e simbolismo (Foto: Nailana Thiely, 2024 )
A criação vernacular fala sobre a criatividade que se desenvolve fora das escolas e ambientes acadêmicos. Ele volta o seu olhar para tudo aquilo que evolui conectado à cultura popular. São soluções estéticas e funcionais que nascem das necessidades do dia a dia, como letreiros pintados à mão em feiras livres ou os trançados das palhas que chegam às marcas de moda. Desta forma, as raízes do Brasil acabam influenciando uma estética no design e carregando consigo a herança cultural de suas regiões. O valor deste conhecimento está justamente na criação de uma ponte entre o tradicional e o contemporâneo, unindo passado e presente e se consolidando como fonte legítima de inspiração.
A redescoberta do artesanato brasileiro
O Brasil se destaca no mundo como um polo criativo, impulsionado por sua vasta diversidade cultural. Parte de toda esta originalidade provém do artesanato; um repertório rico de técnicas e símbolos que, mesmo após décadas de marginalização, está voltando ao centro das atenções.
Durante boa parte do século XX, o design industrial se desenvolveu sem vínculos com as tradições artesanais no Brasil, diferente de países como Japão e Itália. Por trás desta realidade está uma visão imperialista, que associa o trabalho manual ao atraso e a progressão manufaturada como progresso. Este quadro começou a se transformar graças a um grande número de iniciativas de revitalização cultural; são projetos comunitários, feiras de economia criativa, ação de gestores que valorizam o artesanato, educação do público sobre a importância de nossas raízes e produções locais, uma nova geração de designers que vêm se apoiando no feito à mão. O resultado é uma recente valorização do artesanato como elemento de inovação e sustentabilidade, valores essenciais no mercado contemporâneo.
Colaborações transformadoras: designers e comunidades
Peças desenvolvidas pelo grupo “A Gente Transforma”, projeto que usa o design para expor a alma brasileira e mergulhar na cultura dos povos do país (Acervo Pessoal Instagram @agentetransforma, 2023)
Regiões remotas do Brasil apresentam verdadeiras riquezas em técnicas tradicionais. A cidade de Várzea Queimada, no Piauí, conta com o projeto “A gente transforma”, que já levou estudantes e profissionais de design para conviver com artesãos locais. Dessa imersão, surgiram produtos criados em parceria, como peças de mobiliário e decoração inspiradas na cultura sertaneja, que chegaram a ser expostas no Salão do Móvel de Milão, um dos principais eventos internacionais de design. A iniciativa, liderada por Marcelo Rosenbaum, revelou ao mundo o potencial de inovação contido em saberes transmitidos oralmente por gerações.
Peças desenvolvidas por artesãos da Região dos Lagos no Rio de Janeiro pelo projeto Artesa Design de Luiza Bomeny que usa o design como agente de transformação social (Foto: Acervo Pessoal Instagram @artesadesignbr, 2023)
Já o estado do Rio de Janeiro foi o ponto de partida do projeto Artesa Design, iniciativa da consultora de moda e design Luiza Bomeny, que investe no mapeamento de talentos e a posterior capacitação de artesãos. Os grupos já tiveram seu trabalho vendido em feiras como a Carandaí 25, e em espaços pop-up nos shoppings Rio Sul e Casa Shopping, no Rio. No Natal de 2023, foi também responsável pela criação e desenvolvimento dos presépios da igreja São José da Lagoa, e da capela do Cristo Redentor. O último, por sinal, foi reconhecido pelo Vaticano como um dos 100 presépios mais bonitos do mundo. A Artesa ocupou também um espaço na Casa de Cultura Laura Alvim durante a cúpula do G20, mostrando para líderes internacionais a força da união entre o artesanato e o design.
Peças desenvolvidas por artesãos da Região dos Lagos no Rio de Janeiro pelo projeto Artesa Design de Luiza Bomeny que usa o design como agente de transformação social (Foto: Acervo Pessoal Instagram @artesadesignbr, 2023)
No mundo da moda, movimentos semelhantes ganham cada vez mais força. O estilista mineiro Ronaldo Fraga construiu sua carreira celebrando referências artesanais brasileiras em suas coleções, através de peças que contam histórias de rendas nordestinas, bordados do Vale do Jequitinhonha, grafismos indígenas e outras memórias culturais do país. Essa aproximação entre estilistas e artesãos dá novo fôlego à moda brasileira, agregando valor afetivo e simbólico às roupas.
Coleção inspirada nas marés de janeiro do projeto Artesanato em Rede – MULHERES DO MAR (Foto: Divulgação do Projeto, 2024)
Mais um exemplo inspirador vem do Ceará, onde um grupo de 15 artesãs da Comunidade da Graviola, em Fortaleza, colaborou com a designer Joana Gurgel para criar a coleção de moda “Mulheres do Mar”. Por meio do projeto “Artesanato em Rede”, essas mulheres participaram de workshops, oficinas e consultorias de design, aperfeiçoando técnicas tradicionais de crochê e renda. O resultado são biquínis, acessórios e vestuário em cores vibrantes, inspiradas no litoral cearense, que foram lançados em 2024 e imediatamente chamaram atenção nas redes sociais pela beleza e propósito da coleção.
Sustentabilidade e identidade partir do território
Arte Yanomami, tradição em fibras naturais (Foto: Amanda Latosinski, 2023)
A união entre artesanato e design no Brasil também responde a um apelo global por sustentabilidade e consumo consciente. Técnicas tradicionais frequentemente envolvem o uso inteligente de recursos naturais locais, como madeira de reflorestamento, fibras vegetais abundantes e corantes naturais, de baixo impacto ambiental. O ritmo artesanal, oposto à produção massificada, também reforça valores de durabilidade e apreço pela história de cada peça.
Sob a ótica da criação vernacular, a sustentabilidade não é apenas ambiental — ela é, sobretudo, cultural. Incorporar saberes e fazeres tradicionais aos objetos que criamos hoje é uma forma de manter vivas técnicas, histórias e territórios que, há gerações, moldam o modo brasileiro de produzir e habitar. Mais do que preservar, trata-se de ativar essas culturas locais, promovendo autonomia econômica e reconhecimento simbólico por meio do design.
É o que faz o designer Sérgio Matos, natural de Campina Grande, Paraíba. Reconhecido internacionalmente por suas criações com forte identidade brasileira, ele desenvolve projetos colaborativos com comunidades indígenas, ribeirinhas e sertanejas, promovendo o uso de materiais naturais como cipó, buriti, arumã e palha de tucum. Ao invés de impor um repertório estético externo, Sérgio parte do que já existe: os gestos, os trançados, as histórias. Um de seus trabalhos mais emblemáticos foi realizado com a etnia Mehinako, no Alto Xingu, onde desenvolveu luminárias a partir das técnicas de cestaria da comunidade. O resultado? Objetos que carregam a alma do território, mas circulam em mostras de design contemporâneo, mostrando que inovação e tradição não são opostos, mas camadas de uma mesma matéria.
Outro nome fundamental é o de Renato Imbroisi, designer têxtil que há mais de trinta anos atua com grupos de artesãos em diferentes regiões do Brasil. Seu trabalho vai além do desenho: é uma pedagogia do fazer, um convite à autonomia criativa. Em suas andanças por Minas Gerais, Maranhão, Pernambuco e Moçambique, Renato compartilha técnicas de tingimento, estimula a criação de padronagens autorais e promove o diálogo entre o artesanato e os circuitos de moda, design e cultura. Mais do que adaptar o artesão ao mercado, ele propõe reposicionar o mercado a partir do artesão, reconhecendo sua autoria e o valor simbólico de cada fio tecido à mão.
Políticas públicas e redes de apoio
Ronaldo Fraga em workshop com artesãos reunidos pelo PAP – Programa de Artesanato Paraibano (Foto: André Lúcio, 2023)
O florescimento da união entre artesanato e design no Brasil não surgiu por acaso; este movimento vem sendo cuidadosamente cultivado por uma rede de instituições, políticas públicas e representantes da economia criativa. Desde 1992, o Programa Artesanato Brasileiro (PAB) promove o desenvolvimento integrado do artesanato, bem como a valorização do artesão em todo o país. Nos últimos anos, este incentivo do poder público criou programas de fomento e editais específicos para a área, canalizando recursos para projetos que unem design e produção artesanal
Um caminho sustentável e original
Cobogó da Mundaú, feito a partir da casca do molusco sururu. O desenho da peça é inspirado no contorno da concha do animal, considerado patrimônio cultural imaterial de Alagoas (Foto: Pointer / Divulgação, 2021)
A convergência entre artesanato brasileiro e design de produto aponta para um futuro promissor, em que inovação e tradição caminham juntos, tecendo histórias em cada objeto do nosso cotidiano. Buscando inspiração nos saberes tradicionais para criar novos produtos, o design brasileiro não apenas produz itens estéticamente diferenciados mas também reforça a sustentabilidade cultural e ambiental.
No entanto, capitalizar todo esse potencial requer continuidade nos esforços. É preciso assegurar políticas públicas consistentes – editais regulares, programas de formação de artesãos e designers, mecanismos de financiamento e proteção da propriedade intelectual coletiva. As boas práticas já estão em curso: cooperativas capacitadas em gestão, centros de referência como o CRAB, feiras internacionais levando mestres artesãos para o exterior, plataformas online conectando o produtor do interior ao cliente global. O desafio agora é ampliar a escala dessas iniciativas, sem perder o cuidado com a ética e o respeito às comunidades de origem. O design deve empoderar, nunca explorar.
Assim, quando pensamos no Brasil que desponta na próxima década, podemos imaginar uma economia criativa pulsante onde moda e objetos utilitários carreguem alma. A criação vernacular brasileira nos ensina que inovar não significa abandonar o passado, mas sim interpretá-lo com inteligência. Através da preservação do que nos faz singulares e da conexão entre gerações, estamos trilhando um caminho de desenvolvimento sustentável, com peças únicas que contam histórias. Essa é a contribuição do Brasil para o design global: produtos com ginga, com afeto, com raízes fincadas na terra e olhos no futuro.
REFERÊNCIAS
BORGES, Adélia. Design + Artesanato: o caminho brasileiro. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
CARVALHO, Geovanni. Artesanato em Rede lança coleção feita por mulheres da Comunidade da Graviola, em Fortaleza. Brasil de Fato, 2024. Disponível em: https://brasildefato.com.br.
CRAB – Centro Sebrae de Referência do Artesanato Brasileiro. Documentos institucionais. Disponível em: https://crab.sebrae.com.br.
PETROSKI, Jonathan. O que é design vernacular e sua influência no Brasil. Aliens Design Blog, 2021. Disponível em: https://aliensdesign.com.br.ARRUDA, Rafaela M. Design social como ferramenta para valorizar o artesanato. TCC (IFSC), 2020. Disponível em: https://repositorio.ifsc.edu.br.
APEXBRASIL. Exporta Mais Brasil leva artesanato brasileiro ao mercado internacional. Portal Apex, 2023.
GOBIERNO DE MÉXICO. ORIGINAL: colaboraciones justas entre artesanos y diseñadores. Secretaria de Cultura, 2021. Disponível em: https://www.gob.mx.
JORNAL DO COMÉRCIO DO CEARÁ. Prefeitura de Fortaleza e Sebrae realizam 2ª Jornada Iberoamericana de Design e Artesanato. 2018. Disponível em: https://jcce.com.br.
UNESCO Creative Cities Network. João Pessoa e Fortaleza como Cidades Criativas. Disponível em: https://dezem.co.
REDE ARTESANATO BRASIL (PAB/UFMG). Projeto institucional. 2022. Disponível em: https://redeartesanatobrasil.com.br.
SEBRAE. Dados institucionais, programas de fomento e CRAB. Disponível em: https://sebrae.com.br.
ARTESA DESIGN. O Projeto Artesa Design – Plataformas e Biomas. 2023. Disponível em: https://artesadesign.com.br.