
Cerâmica artesanal como expressão de identidade e inovação
Conhecida por seu renomado artesanato em cerâmica de alta temperatura, a charmosa estância climática de Cunha, no interior paulista, revela ao visitante uma experiência que vai muito além dos ateliês locais. Aninhada nas montanhas da Serra do Mar – quase na metade do caminho entre São Paulo e Rio de Janeiro e a cerca de uma hora da histórica Paraty – Cunha surpreende pelas belezas naturais e clima serrano agradavelmente ameno. A cidade está rodeada de Mata Atlântica preservada, abrigando trilhas ecológicas que conduzem a mirantes e cachoeiras cristalinas (são até seis quedas d’água em uma única trilha no Parque Estadual local). Um dos pontos altos é a Pedra da Macela, formação rochosa a 1.840 metros de altitude que brinda o visitante com vistas deslumbrantes de Paraty, da baía de Angra dos Reis e do verde infinito das serras. Nas colinas ao redor, extensos campos de lavanda florescem em tons de roxo e perfumam a paisagem – o Lavandário de Cunha, inspirado na Provença francesa, tornou-se um cartão-postal vivo da região.
Após contemplar a natureza, o visitante encontra em Cunha uma gastronomia rural rica e criativa: os restaurantes locais valorizam ingredientes da terra e oferecem uma verdadeira explosão de sabores, com pratos à base de cogumelos shitake cultivados na região, trutas de riachos de montanha, suculentas carnes de cordeiro, pinhões colhidos das araucárias e queijos artesanais premiados – há até receitas que incorporam a lavanda como especiaria aromática. Essa tradição culinária, herdada da vida caipira e enriquecida por novos produtores, é motivo de orgulho e festa: anualmente, a cidade celebra eventos gastronômicos como o Festival do Pinhão e o Festival do Queijo, nos quais moradores e visitantes se deliciam com as iguarias locais em meio a muita música e confraternização.
Cunha se desvela como um destino envolvente e multifacetado – um convite irresistível para explorar cada encanto escondido, além do artesanato famoso que a tornou conhecida.
A história da cerâmica de Cunha começa muito antes das técnicas aprimoradas e dos fornos monumentais. Os tamoios, povos originários dessa terra, moldavam a argila com as próprias mãos, criando utensílios de cozinha e objetos de significado ritualístico. Misturavam à argila conchas moídas e fibras vegetais, garantindo uma resistência natural às peças que, posteriormente, eram queimadas em fogueiras abertas num processo rudimentar, mas surpreendentemente eficaz. Os grafismos que adornavam as superfícies de potes e moringas não eram meros enfeites, mas sim códigos de um mundo espiritual, uma linguagem visual que se perdia entre os séculos.
A chegada do forno Noborigama e a transformação da cerâmica artesanal
Com a colonização e a chegada dos portugueses, a tradição indígena se fundiu ao trabalho das paneleiras locais, mulheres que perpetuavam a arte de moldar o barro para o dia a dia. Panelas, potes e jarros eram cozidos em fornos de barranco, rudimentares, mas eficientes, que sustentaram essa tradição até que uma nova revolução viesse para transformar para sempre a cerâmica de Cunha.

Nos anos 1970, uma inesperada ponte entre Brasil e Japão daria um novo rumo à cerâmica de Cunha. Foi nessa época que um grupo de ceramistas, entre eles Toshiyuki e Mieko Ukeseki, Alberto Cidraes e os irmãos Vicente e Antônio Cordeiro, trouxe para a cidade um dos métodos mais sofisticados de queima de cerâmica: o forno noborigama. De origem japonesa, essa monumental estrutura de tijolos dispostos em subida permite que o fogo suba por suas diversas câmaras, atingindo temperaturas que superam os 1.400 °C.
Diferente dos antigos fornos a lenha convencionais, o forno Noborigama introduziu uma alquimia natural à cerâmica local. A cinza da madeira, levada pelo calor extremo, deposita-se sobre as peças, formando vidrados orgânicos e inesperados, que conferem a cada objeto uma assinatura única. Nenhuma peça sai do forno igual à outra. O resultado é sempre um diálogo entre fogo, argila e acaso, uma coreografia invisível que define as cores, texturas e padrões da cerâmica.
A geologia da região tem um papel fundamental nessa transformação. O solo de Cunha, formado pela decomposição de rochas feldspáticas ao longo de milênios, contém uma argila de qualidade excepcional. Plástica e resistente, ela pode ser modelada com precisão e suporta altas temperaturas sem perder sua integridade. Seus óxidos minerais interagem com o fogo do forno, criando uma paleta de cores que varia entre os tons terrosos da ferrugem, os verdes profundos da cinza vitrificada e os sutis toques dourados que surgem nas peças mais expostas às chamas.

Turismo, arte e valorização do artesanato em Cunha
O ritual da queima da cerâmica de Cunha é um espetáculo à parte. O forno Noborigama é alimentado por lenha durante dias seguidos, num processo extenuante que exige paciência e precisão. Cada pedaço de madeira é escolhido com cuidado, pois o tipo de lenha influencia diretamente na textura e no tom final das peças. O fogo consome lentamente o oxigênio dentro das câmaras, e a temperatura sobe até o limite do suportável. Os ceramistas monitoram o processo com olhar atento, ajustando as entradas de ar, observando as pequenas explosões de luz e fumaça que escapam pelas frestas. Quando chega o momento certo, o forno é lacrado e começa o resfriamento, um processo que pode levar dias. A expectativa cresce. Quando as portas finalmente se abrem, revela-se o inesperado: peças transformadas pela fúria do fogo, com texturas e vidrados impossíveis de serem repetidos, registros únicos de um fenômeno que nunca acontece da mesma forma duas vezes.
A cidade, hoje, é um mosaico de ateliês e mestres ceramistas, cada um com sua abordagem e sua assinatura artística. O Ateliê Suenaga & Jardineiro mantém viva a tradição do forno Noborigama e abre suas fornadas ao público. O Ateliê Alberto Cidraes é um santuário, onde a experimentação e a tradição andam lado a lado. A Casa do Artesão reúne o trabalho de diferentes artistas locais, criando um espaço de troca e valorização da produção artesanal.

Mestres do fogo: ceramistas que mantêm viva a tradição
Se a cerâmica de Cunha é reconhecida internacionalmente por sua sofisticação e identidade, é porque existem mãos que alimentam o barro com alma, técnica e inventividade. São mestres que não apenas dominam a arte de moldar, mas também desafiam o fogo com coragem lírica, transformando a argila em cultura viva. Entre os mais importantes nomes da região, alguns são guardiões da tradição, outros reinventores de caminhos — todos eles são protagonistas de uma história que se faz, peça por peça, desde o tempo das paneleiras até a explosão criativa dos fornos Noborigama.
Benedita Olímpia de Abreu (Dita Paneleira)

Ela foi mãe, paneleira e guardiã da memória do barro. Benedita Olímpia de Abreu, carinhosamente chamada de Dita Paneleira, viveu quase um século moldando panelas e memórias em Cunha, no interior paulista. Nascida em 1912 no bairro rural de Jacuí-Mirim, aprendeu o ofício com a avó e, aos 15 anos, já dominava a arte de transformar argila em utensílios que aqueciam o cotidiano das famílias da região.
Seu trabalho era todo desenvolvido de forma manual, desde o preparo da argila até a queima no tradicional forno de barranco construído por seu marido no bairro de Suridade. Suas peças — potes, panelas, moringas — atendiam tanto às festividades religiosas, como batizados e a Festa do Divino, quanto às necessidades cotidianas da comunidade. Dita teve sete filhos, e embora alguns tentassem seguir seus passos, nenhum se manteve no ofício. Mesmo assim, sua influência permanece: ela inspirou gerações de ceramistas contemporâneos que chegaram a Cunha décadas mais tarde.
Dita Paneleira faleceu em 2011, aos 98 anos, deixando um legado silencioso, porém vibrante: uma cerâmica ancestral, moldada com mãos firmes, transmitida não por escola, mas por convivência, olhar e exemplo. Hoje, é lembrada como a última das grandes paneleiras de Cunha, uma mulher que fez do barro sua morada e da tradição a sua herança (MECC, 2023).
Alberto Cidraes
Alberto Cidraes (Foto: Instagram Alberto Cidraes, 2024)
Arquiteto de formação, ceramista por paixão e ponte viva entre culturas, Alberto Cidraes transformou Cunha em solo fértil para a cerâmica de alta temperatura. Nascido em Elvas, Portugal, em 1945, formou-se em Arquitetura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, mas foi no Japão que teve seu encontro definitivo com o barro. Durante uma pós-graduação em arquitetura tradicional japonesa na Universidade de Kyushu, encantou-se com a cerâmica oriental e decidiu que esse seria o ofício de sua vida.
Em 1975, ele chegou ao Brasil acompanhado da esposa Maria Estrela e dos ceramistas japoneses Toshiyuki e Mieko Ukeseki. Juntos, estabeleceram em Cunha o primeiro forno Noborigama do país e fundaram o Ateliê Matadouro, onde hoje funciona a Casa do Artesão. Com essa iniciativa, Cidraes introduziu uma técnica milenar japonesa ao contexto brasileiro, criando uma síntese única entre tradição asiática e matéria-prima nacional.
Seu trabalho é marcado pela experimentação: peças com esmaltes improvisados, sons extraídos da cerâmica, pinceladas japonesas que evocam paisagens e atmosferas. Entre idas e vindas ao Japão e a Portugal, Cidraes consolidou sua produção como uma das mais influentes do Brasil. Lecionou, orientou novos artistas e até hoje mantém seu forno Noborigama ativo como laboratório e espaço de criação (CIDRAES, 2023).
Contato do artesão:
cidraes.com (present work)
Gilberto Jardineiro

Na curva sinuosa das montanhas de Cunha, Gilberto Jardineiro construiu uma história que se confunde com a própria cerâmica da cidade. Fundador do ateliê Suenaga & Jardineiro ao lado da artista japonesa Kimiko Suenaga, Gilberto foi um dos responsáveis por consolidar a técnica do forno Noborigama no Brasil, dando vida a peças que misturam a precisão oriental com a expressividade brasileira.
Seu ateliê, ativo desde 1985, tornou-se um templo da cerâmica de alta temperatura. A argila usada é local, os esmaltes são desenvolvidos artesanalmente, com cinzas de arroz e eucalipto, e a queima é um verdadeiro rito — uma jornada de até 30 horas onde o fogo molda texturas únicas em cada peça. Ao lado da esposa e do filho Giltaro, transformou o Kamabiraki — cerimônia de abertura do forno — em um evento aguardado por colecionadores e curiosos.
Mais do que peças de uso ou contemplação, Gilberto produz afetos no barro. Cada tigela, jarro ou escultura traz em si o peso do gesto manual e a leveza de quem respeita os ciclos da natureza (AMARELLO, 2023).
Contato do artesão:
Bibliografia
AMARELLO. Gilberto Jardineiro: barro, fogo e tempo. São Paulo, 2023. Disponível em: https://amarello.com.br. Acesso em: 30 mar. 2025.
CIDRAES, Alberto. Site oficial. 2023. Disponível em: https://cidraes.com. Acesso em: 30 mar. 2025.
GUSTAVO ASSIS CERÂMICAS. Ateliê Suenaga & Jardineiro. São Paulo, 2023. Disponível em: https://gustavoassisceramicas.com.br. Acesso em: 30 mar. 2025.
MECC. Benedita Olímpia de Abreu (Dita Paneleira). Museu Espaço de Cultura e Cidadania. São Paulo, 2023. Disponível em: https://mecc.art.br/artistas/benedita-olimpia-de-abreu-dita-paneleira/. Acesso em: 30 mar. 2025.
SABER CULTURAL. Alberto Cidraes. Rio de Janeiro, 2023. Disponível em: https://sabercultural.com.br. Acesso em: 30 mar. 2025.
TRIP RURAL. Ateliê de cerâmica Suenaga & Jardineiro. São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.triprural.org.br/atelie-de-ceramica-suenaga-e-jardineiro-cunhasp/. Acesso em: 30 mar. 2025.
VEJA SÃO PAULO. Cunha: onde comer, onde dormir e o que fazer na cidade paulista. São Paulo, 2024. Disponível em: https://vejasp.abril.com.br. Acesso em: 30 mar. 2025.
G1. Cunha aposta no turismo de lavandas e clima ameno para atrair visitantes. São Paulo, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp. Acesso em: 30 mar. 2025.
TURISMO SP. Cunha: cultura e natureza entre SP e RJ. Governo do Estado de São Paulo, 2023. Disponível em: https://www.turismo.sp.gov.br. Acesso em: 30 mar. 2025.
CASA VOGUE. Cunha além da cerâmica: onde comer e o que fazer. São Paulo, 2023. Disponível em: https://casavogue.globo.com. Acesso em: 30 mar. 2025.