Arte e maravilhas reunidas na tradição artesanal

Mamulengo alegria – O Casamento da Chiquinha (Foto: Roteiro Baby, 2022)

Mamulengo é brinquedo Divertimento e expressão Boneco que vira gente Madeira talhada à mão É causo de amor e guerra De fé e libertação (Fuzuê, 2022)

 

O Mamulengo é um legado precioso da cultura popular brasileira. Em 2015, foi reconhecido como patrimônio cultural imaterial, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), sendo batizado de forma unificada como Teatro de Bonecos Popular do Nordeste.

O saber desse ofício tem sido passado por meio da tradição oral e ocupa um lugar fundamental na comunicação de nossas histórias e lendas, tanto sagradas como profanas. No entanto, o que permanece em suas diferentes versões é a ousadia do caráter lúdico das narrativas, a habilidade da técnica artesanal que promove o movimento nos corpos dos bonecos e o uso da forma caricatural de suas divertidas personagens.  Dependendo da região a arte assume diferentes nomes.

 

É chamado de Mamulengo, em Pernambuco e no Distrito Federal, mas também recebe diversos nomes pelo Brasil. É Babau, na Paraíba; João Redondo ou Calunga, no Rio Grande do Norte; e Cassimiro Coco, no Ceará, Piauí e Maranhão (FUZUÊ, 2022).

 

O teatro popular de bonecos e suas possíveis origens

Como outras atividades culturais, a criação dos mamulengos não escapa à indefinição de sua origem. Assim como o próprio teatro, coexistem diferentes versões sobre o local e data de seu nascimento. Também como o teatro, os mamulengos respondem às necessidades de comunicação humana.  Esses pequenos seres de madeira articulada, pintados de forma sempre muito colorida, vestidos com chitas, rendas e o que mais se encontrar no universo criativo dos processos artesanais, promovem encantamento e diversão onde quer que se apresentem.

Uma hipótese de sua origem no Brasil remete a criação dos mamulengos aos Jesuítas que, no intuito de catequizar os nossos povos originários, passaram a utilizar a didática teatral dos bonecos articulados para doutriná-los com o sistema de crenças cristãs.

Mamulengo de Mestre Waldeck (Foto: Mamulengo Fulô do Xic Xic, 2016)

Outra igualmente possível história da inauguração dos mamulengos remete à diáspora africana. Nesta versão, os bonecos articulados teriam sido criados pelos artesãos escravizados, que os utilizaram para o repasse de suas histórias orais, seus valores éticos e legados ancestrais de sua cultura.

 

Ao longo dos séculos, o mamulengo se espalhou por diversas regiões do Brasil, ganhando novas nuances culturais provenientes das diferentes comunidades afrodescendentes presentes no país. Essa herança africana é fundamental para entender a essência e as características únicas do mamulengo brasileiro (GUIMARÃES, 2023).

 

A criatividade artesanal mantém viva a tradição

Com o passar dos anos a arte não somente manteve os saberes tradicionais relacionados ao ofício, como a atividade foi incorporando novidades a partir da criatividade dos artesãos. Sem perder o caráter único da produção artesanal, às técnicas mais rudimentares de sua origem novos recursos foram sendo incorporados à produção que tanto acabaram por inovar os repertórios das narrativas como aumentaram a capacidade expressiva dos movimentos.

Sem nunca perder a picardia e o caráter didático da crítica social, característica dos seus personagens mais populares e tradicionais como Benedito, Cabo 70, Professor Tiridá, João Rodondo, Catirina e Caboclinhos, novas figuras foram sendo incorporadas, inspiradas na exuberância do folclore político, repertório facilmente atualizável em nossa sociedade. Essa produção constante é um reflexo da criatividade irreverente da arte do mamulengo e de sua capacidade de renovação crítica ao longo do tempo.

Boneco Indígena, Boneco Negro, Boneco Cabo (Foto; Mamulengofulodoxicxic, 2016)

 

Os mamulengueiros

Ma-mu-len-guei-ros: algumas fontes acreditam que a palavra foi derivada de mão molenga, uma palavra gostosa de se falar. Denominação criada pela língua portuguesa, ela expressa bem a malemolência com que se movimentam as partes dos corpos dos pequenos bonecos de madeira, articulados e criados pelos mestres deste ofício artesanal, patrimônio da cultura brasileira. O ofício dos mamulengueiros contempla a habilidade de realizar apresentações dramáticas por meio da simultânea e precisa articulação.

Em 2019, a professora Valéria Gomes percebeu que nenhum dos mestres mamulengueiros tinha grande visibilidade nas redes sociais e escolheu o tema como objeto de pesquisa para o seu mestrado em Indústrias Criativas da Universidade Católica de Pernambuco. Como desdobramento do projeto acadêmico, a pesquisadora criou o canal do Youtube Mamulengo Arteiro, inteiramente dedicado à tradicional expressão da cultura nordestina. O canal é sem fins lucrativos e abriga a Borogodó News, espécie de jornal informativo na linguagem do mamulengo que relata o que está acontecendo dentro daquele universo.

 

Os grandes mestres desse ofício estão morrendo e a minha preocupação é justamente salvaguardar essa memória para as novas gerações, porque se ninguém fizer isso, vai se perder essa história, e para estimular dentro das famílias que os herdeiros entrem nessa cultura (GOMES, 2021).

 

O artesanato como liberdade de expressão e ousadia

Apesar das semelhanças entre os processos artesanais das marionetes e dos mamulengos, em que ambos os ofícios utilizarem os bonecos articulados e o lúdico como estilo de suas narrativas, o que marca uma forte diferença entre eles é o caráter crítico e moral das suas narrativas: nos mamulengos surgem com fortes personalidades e nas marionetes apresentam personagens adaptáveis e flexíveis.

Boneco mamulengo (Foto: Xapuri Brasil, 2024)
Marionete em madeira (Foto: Girino Marionetes – Elo7, 2024)

 

A diferença se evidencia quando observamos a forma com a qual a língua portuguesa incorporou o termo “marionete” como adjetivo de pessoa manipulável, que se submete aos desejos dos outros. Esse sentido não se adequaria às atitudes dos mamulengos, cuja ética se caracteriza justamente por provocar as regras, estimular a liberdade do improviso e ter a ousadia crítica ao poder como princípio.

Mamulengo Arteiro (Foto Borogodó News: Folha Pernambuco, 2021)

O mestre mamulengueiro Zé Lopes, falecido em 2020, destacava em seus depoimentos que, “sem provocação”, nada acontece e esse seria justamente o poder transformador dessa arte:

 

O boneco, quando chega, quer aparecer. O boneco tem muita malícia. Quer ver o mamulengo ficar arrasado? Se ninguém provocar o boneco… A criança vira adulto diante dos bonecos. Pois elas é que resolvem as confusões dos bonecos, … A criança se sente responsável por aquele ato, por aquilo que ela viu. E o adulto se transforma numa criança, fica abobalhado (LOPES, 2017).

 

A arte dos mamulengos realiza a fusão entre ator e personagem, entre sujeito e objeto, entre a natureza humana do mamulengueiro e sua criatura cultural, o mamulengo. Essa criação artesanal realiza um sonho da liberdade, que se materializa nos bonecos e que, brincando, apresenta a ideia de um mundo mais justo.

O amor precoce do menino Ermírio José da Silva pelo teatro dos bonecos reservaria para ele o lugar de mestre, o Mestre Miro. “É como se fosse um ciclo: eu dou vida a eles e eles e elas a mim e quando for para o outro mundo, eu quero ir fazendo bonecos” (Silva, 2024).

Mamulengo do Mestre Miro (Foto: Acervo Leilões, 2022)

O desejo de continuidade entre vida e obra estimulou o mestre pernambucano na criação do Mamulengo Novo Milênio. Mestre Miro reuniu num só espetáculo um elenco com mais de 30 personagens. Sua arte segue disseminando essa cultura até hoje e dela nascerão novos mestres.

REFERÊNCIAS:

  • Boneco Indígena, Negro e Cabo – Mamulengo Fulô do Xic Xic, 2016
    Disponível em: mamulengofulodoxicxic, Acesso: out.2024
  • EUZÉBIO Yuri, Mamulengo Arteiro é o canal do Youtube dedicado à expressão nordestina. Folha de Pernambuco. 2021. PE.
    Disponível em:folhape.com.br Acesso: out. 2024
  • GUIMARÃES, Guilherme, O que é mamulengo e a distinção entre as marionetes.  Imaginário Brasileiro. 2023
    Disponível em:imaginariobrasileiro.com.br Acesso: out.2024
  • Mamulengo em Madeira Homem – Rakar, Xapuri Brasil. Disponível em: xapuribrasil.com.br Acesso: out. 2024
  • Mestre Miro dos Bonecos – Escultura de madeira. Acervo leilões.  2022. Disponível em: acervoleiloes.com.brAcesso: out. 2024
  • NÓBREGA Cleyton, Alegria, Cultura Popular e Mamulengo – Crítica de Mamulengo Novo Milênio – Mestre Miro dos Bonecos. Vendo Teatro. 2024Disponível em:vendoteatro.com Acesso: out.2024
  • O Mamulengo.  Mamulengo Fuzuê, 2022 Disponível em: www.mamulengofuzue.com.brAcesso: out. 2024
  • Protótipo de marionete. Elo 7. 2024. Disponível em:www.elo7.com.br Acesso: out. 2024
  • Teatro dos Bonecos Mamulengo Alegria é a Atração Infantil Gratutia do diversão em conjunto deste sábado. Roteiro Baby, 2022 Disponível em: roteirobaby.com.br  Acesso em: out, 2024
  • Grátis nos parques: Mestre Valdeck traz mostra de teatro mamulengo para São Paulo. São Paulo para crianças, 2022
    Disponível em:saopauloparacriancas.com.brAcesso: out. 2024
  • SUASSUNA Marina, Mamulengueiro Zé Lopes é Patrimônio Vivo de Pernambuco. Cultura PE, Pe, 2017 Disponível em: www.cultura.pe.gov.br Acesso: out. 2024
  • Teatro de Mamulengo ocupa a Praça Rui Barbosa no quarto dia do festival da Cia. Fábrica de Sonhos, Picnews. 2022.Disponível em: picnews.com.br Acesso: out.2024