
Nascido em 12 de maio de 1947 em Nossa Senhora da Glória, no sertão do estado de Sergipe, Cícero Alves dos Santos tornou-se conhecido artisticamente como Véio, um apelido carinhoso que ganhou ainda na infância, por conta do hábito de passar longas horas estudando as histórias dos seus antepassados. Filho de agricultores da caatinga nordestina, ele cresceu cercado de galhos secos e troncos caídos na paisagem local, observando a dura rotina da roça e ouvindo causos sertanejos todos os dias ao entardecer. Nos intervalos do trabalho rural, já demonstrava aptidão para modelar pequenas figuras com cera de abelha, até descobrir que a madeira regional da caatinga oferecia matéria-prima ainda mais rica para a sua arte, que veio se tornar referência no artesanato do sertão.
O passar do tempo fez com que ele desenvolvesse a técnica de esculpir a madeira encontrada na mata; seu princípio era respeitar o ambiente, de modo que jamais derrubava árvores vivas para criar suas obras. Pelo contrário, reunia galos e tocos já caídos. Como ele mesmo explicou. “Dou vida ao que já está morto”, transformando os restos da vegetação nativa em esculturas coloridas. Tal relação harmoniosa com a natureza deu às suas peças de artesanato do sertão um efeito quase místico: troncos retorcidos que despontam como figuras vivas, transformados pelas mãos do artesão.
O Sítio Soarte e o Museu do Sertão

Foi pouco a pouco que Véio transformou sua propriedade num verdadeiro museu a céu aberto; no município vizinho de Feira Nova ele fundou o Sítio Soarte – Museu do Sertão, onde hoje guarda cerca de 17 mil obras suas. Ali as esculturas, algumas imponentes como árvores esculpidas, outras delicadas como minúsculas cenas cotidianas, estão espalhadas pelos espaços ao redor da casa. Visitantes podem caminhar pelas clareiras do sítio, entre figuras humanas, animais e seres fantásticos, pedaços do artesanato do sertão que parecem emergir do próprio solo árido.

Lá, Veio não apenas exibe sua arte; ele narra a vida sertaneja por meio dela. As cenas retratam o trabalho duro e os costumes locais, preservando em cada pedaço de madeira as histórias que escutava na infância. A extensa coleção foi apelidada de Museu do Sertão por críticos e curadores, tornando-se um arquivo vivo da cultura nordestina. Cada obra é um fragmento de memória daquela região; um pai guiando um boi arado, uma mãe amamentando na sombra de uma árvore, um artesão trabalhando com seus instrumentos. Ao invés de levar sua visão de mundo para as paredes de um museu nas grandes capitais, Véio escolheu integrar sua arte com a natureza, expondo as peças de artesanato do sertão sob o duro sol do sertão.
Técnica e estilo

A produção de Véio se divide em dois grupos bem definidos, fruto de sua percepção única das madeiras do sertão. De um lado estão as esculturas de grande porte, criadas a partir dos “troncos abertos”, pedaços de árvores cujo formato natural sugere figuras humanas e animais. Nestes troncos exuberantes, ele aplica tintas industriais vivas e contrastantes, resultando em esculturas antropomórficas de efeito pop e impacto imediato. As obras maiores chamam atenção à distância, como árvores mágicas que brotam com cores inesperadas na paisagem semiárida.
De outro lado, ele entalha em “madeiras fechadas”, galhos retos e menos sugestivos, cenas do dia a dia em tamanho diminuto. Ali, mantém a superfície natural do tronco, trabalhando detalhes minuciosos. As peças pequenas contam anedotas do cotidiano do sertão: um artesão trabalhando, um grupo de devotos, personagens folclóricos. Muitas das obras chegam a medir apenas poucos centímetros, ou até mesmo milímetros. Há esculturas esculpidas na ponta de um palito de fósforo, ou mesmo sobre a cabeça de um alfinete. Mesmo tão pequenas, essas cenas carregam toda a dimensão narrativa de sua arte. Nas palavras dele, “a arte não é medida pelo tamanho e nem pelo peso”.
Temas e narrativas sertanejas

O imaginário de Véio é profundamente enraizado na cultura popular nordestina. Suas obras maiores exploram metáforas e simbologias regionais, enquanto as peças menores narram o cotidiano campesino. Entre os temas recorrentes estão cenas domésticas e retratos da vida sertaneja. Ele também mergulha profundamente nos mitos e lendas do Nordeste. Na série “Os cão do meu inferno”, esculpiu figuras endiabradas em tons escuros, evocando imagética religiosa e folclórica. Ele apresenta ainda palhaços, santos populares e outros personagens que habitavam os causos que ele tanto gostava de escutar quando menino.


A escolha por tal temática não é gratuita, ela retrata os costumes, os causos e as lendas do povo do sertão. Em cada obra, a madeira entalhada traz à tona a voz de uma população solar, transmitindo uma narrativa profunda sobre a história do Sergipe. Assim, misturando realidade e fantasia, Véio dá visibilidade às tradições por muitas vezes ignoradas, garantindo que as histórias continuem vivas.
Reconhecimento nacional e internacional

A arte de Véio ultrapassou os limites do artesanato do sertão; no ano de 2017 ele foi um dos homenageados pelo Prêmio Itaú Cultural 30 Anos, um reconhecimento dos criadores que marcaram a cultura brasileira nas últimas décadas. Desde então, suas peças ganharam espaço em mostras de arte contemporânea, tanto no país quanto pelo mundo, chegando a cidades como Veneza, Londres e Paris. Véio também exibiu suas peças em bienais e exposições coletivas em galerias internacionais e teve mostras solo em São Paulo e no Rio de Janeiro. Hoje, suas obras integram coleções públicas na Pinacoteca de São Paulo e no Museu de Arte do Rio. Jornalistas e documentaristas já retrataram a sua história, reconhecendo-o como um dos nomes mais destacados da arte popular brasileira.
A Universidade Federal de Sergipe, no ano de 2024, concedeu a Véio o título de Doutor Honoris Causa. Na cerimônia, ele reafirmou a sua missão. “O meu trabalho não é só esculpir, é passar a verdade para o povo”. Para a comunidade acadêmica e para o público, tal honraria ressaltou a verdadeira essência da arte; um homem simples, sem diploma formal, que se tornou mestre na arte popular de sua terra. Hoje, Véio inspira novos artistas ao mostrar que a criatividade sertaneja e o respeito à natureza são capazes de criar peças de impacto universal.
Referências Bibliográficas
ITAU CULTURAL. Véio recebe o título doutor honoris causa. Itaú Cultural, 05 mar. 2024. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/secoes/noticias/veio-recebe-titulo-doutor-honoris-causa itaucultural.org.br
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE. “O meu trabalho não é só esculpir. É passar a verdade para o povo” — UFS concede título de Doutor Honoris Causa ao artista plástico Véio. Aracaju, 06 mar. 2024. Disponível em: https://www.ufs.br/conteudo/73957 pt.wikipedia.org+6ufs.br+6ufs.br+6
WIKIPEDIA. Véio. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/V%C3%A9io
PINHEIRO, Larissa. UFS concede título de Doutor Honoris Causa ao artista popular Véio. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, 12 mar. 2024. Disponível em: https://ufs.br/conteudo/74910-ufs-concede-titulo-de-doutor-honoris-causa-ao-artista-popular-veio
LATAM ARTE. Cícero Alves dos Santos (Véio). LatAm ARTE, 2014. Disponível em: https://www.meer.com/en/11833-cicero-alves-dos-santos-veio