Símbolo da história do Nordeste, as cuscuzeiras de barro são produzidas de forma artesanal e carregam  

Cuscuzeira de barro. (Foto: Kassuá, 2025)

A cultura nordestina não poderia ter melhor representatividade do seu legado histórico do que com as cuscuzeiras de barro. Em comemoração ao Dia da Cultura Nordestina, 02 de agosto, destacamos esse importante utensílio de cozinha, preparado de forma artesanal e que mantém viva as tradições familiares do sertão. Os traços e aromas guardados na memória de homens e mulheres mantêm vivo os costumes de seus antepassados na produção de cuscuz, alimento considerado, no ano de 2020, como Patrimônio Imaterial da Humanidade pela Unesco.  

 

Cuscuz nordestino pronto para servir. (Delícia Gostosa, 2023)

Segundo artigo dos pesquisadores Jônatha Rodrigo Tiago e João Victor de Oliveira Costa (Tiago, 2021, p.10), a gastronomia nordestina é uma soma de influência de várias culturas, dentre elas a europeia, africana e indígena. A cuscuzeira de barro faz parte desse símbolo que carrega um manancial de referências culturais e saberes culinários que trazem registros de diferentes povos. O estudo destaca que as adaptações quanto ao modo de fazer e substituição de ingredientes, resultam em sabores e aromas únicos, o que torna a cozinha do Nordeste diferenciada e apreciada em todo o Brasil e no mundo. 

Cuscuzeira de barro em fogão a lenha. (Fartura Brasil, 2021)

 

Cuscuzeiras atravessam o atlântico e viram identidade da cultura nordestina  

Mulher preparando manualmente o Couscous. (Foto: Comes, 2019)

Influenciadas pelos costumes alimentares provenientes do continente europeu, africano e sul-americano, as cuscuzeiras de barro são produzidas de forma artesanal e carregam a identidade de gerações de povos da África e originários, ditando o tempero da comida nordestina.  

Tendo como origem a região africana de Magrebe, o cuscuz recebeu o nome de “k’seksu” pelos povos nômades berberes, devido ao som produzido pelas panelas usadas para cozinhar o alimento, dando origem ao termo cuscuzeiras. A iguaria, que na versão francesa era chamada de “couscous” (nome dado pelos colonizadores na Argélia), passa por cozimento de forma artesanal em banho-maria, dentro de uma panela de cerâmica, barro ou de metal. 

Mas foi durante a colonização do Brasil pelos portugueses com a vinda forçada dos escravizados, que a cultura africana chegou ao país. Assim seus hábitos, costumes e o modo de preparo de iguarias como o cuscuz e diferentes formas de cuscuzeiras entraram no cotidiano dos brasileiros. 

 

Cuscuzeira usada na culinária magrebina. (Foto: Folha de Pernambuco, 2025)

Muito se releva quando se identifica o entrelaçar da relação do homem com o solo ao cultivar os alimentos de sua cultura. Na África, o cuscuz teve como base de produção a sêmola de trigo. No Brasil, a sêmola dá lugar a farinha de milho e segue o mesmo processo de produção. O milho, uma das principais matérias-primas do prato dos brasileiros, é um elemento versátil e usado em diversos preparos gastronômicos.  A professora do Instituto Federal do Piauí, Dayse Batista, destaca em reportagem para o programa Paine Agro / TV Meio que o cuscuz, no Brasil feito de milho, tem uma forte identidade no Nordeste devido à alta produção desse cultivo e da tradição local em consumi-lo. A reportagem aponta que o país é um dos maiores produtores de milho do mundo e que o alimento é rico em nutrientes e tem fácil manejo. 

 

Fazendo arte com as mãos artesãs modelam suas histórias  

Cuscuzeira de barro. (Nicole dos Potes, 2021)

As primeiras cuscuzeiras na história eram produzidas em barro e argila, algum tempo depois surgiram as de metal. O processo de cozimento das cuscuzeiras é o mesmo, independente do material utilizado para sua confecção. Muitos artesãos ainda lançam mão da cuscuzeira de barro, devido ao sabor único que o elemento traz para o cuscuz, assim como o valor histórico e emocional atrelado as tradições nordestinas. 

O barro, utilizado na produção artesanal da cuscuzeira, é responsável em manter o prato mais quente e realça o sabor do alimento, trazendo um aroma que fortalece as raízes brasileiras. A cuscuzeira, produzida de forma artesanal, possui borda alta e funda, sendo que a base principal é mais estreita que a boca, como se fosse um chapéu.  

De acordo a pesquisadora Daniella Magri Amaral, as cuscuzeiras têm o formato arredondado, apresentando duas partes: a panela de baixo e o prato que fica na parte de cima. O bocal da panela é aberto e a base estufada. Na parte externa há alças que ajudam a segurar a cuscuzeira na hora de preparar o cuscuz.  

Para utilizar o aparelho, é necessário colocar água na parte inferior da cuscuzeira, encaixar o suporte por onde passa o vapor e na parte de cima colocar os ingredientes, fechar com a tampa e aguardar o tempo de cozimento. 

 

Cuscuzeira de barro. (Foto: Artesanato Cearense, 2025)

 

Cuscuzeira de barro. (Foto: Kassuá, 2025)

 

Cuscuzeira de barro. (Foto: Ateliê da Dona Rosa, 2023)

A cearense Dona Rosa mostra, em seu perfil no Instagram, como é o preparo do barro para fazer suas peças, de forma artesanal, dentre eles a cuscuzeira de barro. Após separar a quantidade de barro que vai usar, coloca um pouco de areia peneirada e deixa a mistura de molho de um dia para o outro. No dia seguinte, a artesã pega a quantidade de barro para trabalhar e a amassa com as mãos, várias vezes, até ficar num ponto em que a massa dê liga. 

Dona Rosa preparando o barro para produzir a cuscuzeira. (Foto: Ateliê da Dona Rosa, 2023)
Dona Rosa produzindo uma cuscuzeira de barro. (Foto: Ateliê da Dona Rosa, 2023)

 

Cuscuz de cabeça virada 

A cientista social do Rio Grande do Norte, professora Maria Isabel que realiza estudo sobre o valor histórico do cuscuz no Nordeste, fala como antigamente tudo era feito na mão: chamado de “cuscuz de cabeça virada”, primeiro os milhos eram colhidos, manualmente, usava-se os piões para bater, depois eram peneirados, em seguida, fervia-se água em uma panela e por cima dela colocava-se a massa do farelo de milho envolto em um pano umedecido. “É uma comida que está na memória das pessoas. Que passou de geração em geração. O sabor está justamente nessa lembrança”, completa. 

Cuscuz cabeça virada. (Foto: G1, 2021)

 

A paixão pelo cuscuz nordestino é tanta que evento monta cuscuzeira de 4 metros de altura, na cidade de Caruaru 

Cuscuzeira gigante durante evento em Caruaru. (Foto: Maryane Martins, 2023)

Em reverência as tradições gastronômicas de Pernambuco, prefeitura de Caruaru promove, anualmente, o “Caminhada do Forró com o Maior Cuscuz do Mundo”. Em sua última edição, no dia 9 de junho de 2025, a comemoração, realizada no bairro do Alto do Moura em Pernambuco, reuniu mais de 80 mil pessoas em torno de uma cuscuzeira de 4 metros de altura. 

O ponto alto da festa é a distribuição do cuscuz para todos os participantes, servido após os brincantes percorrerem mais de 3 kms de distância, caminhando e cantando. Organizadores do evento destacam que a cuscuzeira recebeu 800 kg de flocos de milho. 

Em sua primeira edição em 1993, a caminhada, durante 3 horas seguidas de muito forró, percorreu um trajeto de 8 quilômetros, do centro da cidade de Caruaru até o alto do Moura. Ao final do evento, os participantes estavam exaustos e com muita fome. Ao perceber isso, o organizador da festividade, José Augusto Soares, decidiu unir o cuscuz à caminhada e, no ano seguinte, levou a cuscuzeira gigante para a festa. Na edição de 1996, o cuscuz gigante teve mais de 600 quilos e entrou para o Guinness Book, livro dos recordes. 

 

Empreendedora funda Memorial do Cuscuz em homenagem a tradição familiar e ao alimento que a ajudou a sustentar seus quatro filhos 

Memorial do Cuscuz (Foto: De mala feita, 2023)

O momento de cozinhar cuscuz, para muitos nordestinos, é um evento que traz consigo lembranças da tradição familiar. Para Dona Lia, da cidade de Ingá, na Paraíba não poderia ser diferente. Com o objetivo de perpetuar a história de gerações em torno da produção da iguaria que lhe ajudou a sustentar seus filhos, ela decidiu fundar, em 2015, o Memorial do Cuscuz.  No local, a empreendedora recebe visitantes de várias regiões do país e do exterior para apreciar o cuscuz que possui um nome bem peculiar: “cabeça amarrada”, devido a forma como prepara a iguaria. 

No espaço, Dona Lia mantém viva a memória de sua família com relíquias como: panelas, utensílios, cuscuzeira, máquina de costura, chaleira, dentre outros. Sua avó, de origem indígena, deixou ainda um moinho, equipamento responsável em triturar grãos de milho, transformando-os na farinha para a produção do cuscuz. 

Referência cultural do Nordeste, o modo de preparo do cuscuz, as produções manuais são um símbolo da resistência e da união familiar em torno de meios de subsistência no sertão e caatinga. A alegria em poder reavivar histórias que marcaram a infância de muitos jovens, traz no imaginário a riqueza cultura da região, bem como o grande apelo emocional das gerações que viram mães e avós saírem de suas casas para buscar o barro, preparar a cuscuzeira, de forma artesanal, cozinhar o cuscuz e alimentar toda a família. 

 

Referência bibliográfica 

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