Carranca: um símbolo nacional que habita o imaginário brasileiro.
Peça tradicional de artesanato do Rio São Francisco, a carranca é um objeto tipicamente brasileiro e merece ser celebrado neste 18 de setembro.
Dia 18 de setembro é o dia do Símbolo Nacional. Tradicionalmente se faz reverência à bandeira, ao hino e ao selo do Brasil, como forma de exaltar a identidade nacional. Os tradicionalistas que nos desculpem, mas sabemos que no Brasil existem outros diversos símbolos que definem a nossa nacionalidade e identidade de forma muito potente, e nada mais justo que neste dia, trazermos para o foco um dos maiores ícones brasileiros: A carranca.
Não se pode negar a força simbólica que a carranca tem sobre a nação. Em todos os cantos do país é possível encontrá-la em lares, escritórios, sítios e fazendas além de facilmente serem vistas à venda em alguma loja de souvenir ou artesanato. Esta peça que tem uma origem única no médio do São Franscisco se espalhou por todo território brasileiro e hoje pode ser considerado um dos maiores símbolos nacionais. Podendo ser feita de madeira, as mais tradicionais, mas também de cerâmica e outros materiais, mostramos neste artigo porque a carranca é tão importante simbolicamente para nosso país.

Origem da carranca e suas lendas
As carrancas são figuras de proa, tipicamente brasileiras. Existem diversos tipos de figuras de proa que compõe as culturas de muitos povos, bustos de pessoas importantes da época, dragões, sereias, chifres, mas a tipologia que chamamos de carrancas é originária do Brasil e especificamente de uma região, o Rio São Franscisco.
Além de local de origem, configura-se uma Carranca aquelas que demonstram o hibridismo entre humanos e animais, misturando em uma única figura traços de ambos. Originalmente elas adornavam as barcas que levavam cargas e passageiros, a remo, subindo e descendo as artérias fluviais do rio.
Mas por que essa esculturas de proa? Muito se fala da força espiritual das carrancas já que no Velho Chico, se acreditava que essas figuras espantavam o nego d’água. Esse espírito dos rios assombrava pescadores e embarcações, e se acreditava ser responsável por virar ou destruir os barcos. Como todo ser etéreo não se sabe ao certo a sua aparência, alguns dizem se tratar de uma mistura entre homem e anfíbio, outros que é careca e com mãos de pato. É certo que habita as águas profundas do São Francisco, protegendo a vida que ali vive a pregando peças em lavadeiras e pescadores da região com sua gargalhada que assusta quem a ouve.
Segundo Guarany, um dos maiores carranqueiros que existiu, “quando o barco tinha perigo de naufrágio a carranca dava três gemidos, mas isso é a lenda, não acredito nisso não. Mas acredito que espantava as feras do rio, o nego d’água e caboclo d’água e o minhocão, hoje os barulhos dos motores afugentaram essas feras do rio” (A Fascinante História das Carrancas e os Remeiros do Rio São Francisco)

É por essa razão, para afastar os maus espíritos, que a carranca devia provocar medo em quem causa medo, e assim, ao fazê-las feias, com caretas e rosto de monstro, garantia-se que as navegações seguiriam seguras rio a fora. Além da função de proteção espiritual, as carrancas também serviam para chamar a atenção das pessoas, avisando quais tipos de barcas com objetos de desejo e necessidade estavam chegando.
Guarany – o grande mestre artesão carranqueiro
Com a chegada de novas tecnologias e barcos de motor, a embarcação de madeira onde as carrancas eram acopladas foram ficando obsoletas e caindo em esquecimento. A morada das carrancas deixou de existir em sua função principal, abrir os caminhos dos navegantes, e em uma dança impermanente de forças e signos, o realojamento da figura aconteceu. A carranca “caminha” para fora das águas a partir de uma identificação e conceituação de obra de arte e ocupam novos locais, tendo seu formato reconfigurado e adaptado. Não mais são inclinadas em estruturas de barco, mas autoportantes em seu próprio pescoço, ganhando autonomia de em si. Colecionadores e caçadores de obras de arte encontram na carranca um novo motivo de arte brasileira, onde grandes mestres artesãos mostraram toda a potência do fazer manual.

O carranqueiro mais famoso foi Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany, mais conhecido por apenas Guarany. Nascido na Bahia em 1884, aprendeu a fazer carrancas para barcos em 1901. Até a década de 1940 produziu mais de 80 carrancas para barcas. Mas com o fim das embarcações de remeiros (barcos movidos a remos), Guarany também perde parte de seu trabalho. Apenas em 1954, a partir de um grande movimento e interesse de colecionadores e críticos de arte, o artesão volta a fazer suas carrancas, agora para comporem coleções e decorações domésticas. Neste ano, suas carrancas são exibidas em São Paulo e em Salvador. O prestigio só cresce e em 1968 recebe o diploma de membro correspondente da Academia Brasileira de Belas Artes. No ano seguinte, Lina Bo Bardi expõe suas carrancas na exposição “A mão do povo brasileiro”, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp). Até sua morte, é homenageado e participa de diversas exposições dentro e fora do Brasil, se consagrando um dos maiores nomes da arte popular brasileira. O Mestre Guarany falece em 1985.

Tradicionalmente as peças do mestre eram feitas em umburana, madeira típica do Nordeste. Sua grande habilidade em entalhe é percebida nos detalhes de suas obras, com cabelo, bigodes, jubas e crinas muito elaboradas com ranhuras simétricas semelhantes aos santos que produziu no começo de sua carreira. Os motivos híbridos remetem a pessoas, cavalos, leões e seres do imaginário, com dentes afiados, testas franzidas, expressões assustadas ou de raiva. Podem ser pintadas de branco, preto e vermelho ou apresentar a madeira em estado natural.

Do cinema nasce a carranca vampiro de mestre Bitinho e transforma o Brasil
Outro grande carranqueiro, que deixou sua marca na história do Brasil foi Mestre Bitinho (Severino Borges de Oliveira) criador da carranca Vampiro. Este formato de carranca é um dos símbolos nacionais mais conhecidos e mal sabia ele que uma sessão de cinema pudesse mudar a imagética nacional. Em 1971, em um dia tranquilo de folga, Bitinho resolve ir ao cinema, assistir ao filme “A Fuga de King Kong”, dirigido pelo japonês Ishiro Honda. No filme o macaco gigante luta intensamente com uma réplica robótica do seu tamanho. Isso causou tamanho impacto no artesão que a necessidade de colocar para fora de si o que viu se transformou numa das peças mais famosa do país, a carranca vampira, inicialmente chamada de carranca macaca.

Mestre Bitinho, ainda produz peças. Nascido em 1941, andou por diversos locais do país com seu pai, um cigano artesão da madeira e do ferro. Com 5 anos o artista já mexia com ferro e as 12 era um artesão da madeira. Como aponta no Portal Artesanato de Pernambuco, “Minhas peças eram vendidas nas feiras e eu dava todo o dinheiro para o meu pai. Me sentia feliz em ajudar ao meu pai. Só ficava mesmo com o dinheiro para o cinema, o pão doce e a garapa de cana”.

Em 1970 chegou em Petrolina, Pernambuco, e fez escola carranqueira, iniciando grandes artesãos que por ali passaram. Produz desde miniatura a peças com mais de 3 metros: “Tenho facilidade em fazer de tudo. Na cabeça da gente tem uma máquina de filmar”, aponta. Em 1989, fundou a Oficina do Artesão Mestre Quincas, espaço coletivo em atividade até hoje, formando diversos escultures. “Meu trabalho representa a minha liberdade. A busca de conhecimento não pode ter fronteiras. Quero continuar trabalhando firme e forte e vou chegar aos cem anos entalhando madeira. Só vou parar quando morrer, mas pensando melhor, nem isso vou conseguir porque acho que não vou morrer nunca” (Artesanato de Pernambuco)
A grande ceramista Ana das Carrancas
Ana das Carrancas, como o nome já diz, foi uma artista que encontrou na figura da carranca sua própria identidade artística. Inicialmente se especializou em panelas de barro, ofício típico de mulheres da sua região e prática herdada de sua mãe. Mas foi em um momento de dificuldade que tudo se transformou. Com problemas financeiras rezou para que uma luz lhe guiasse, é então que no dia seguinte, ao observar o rio São Francisco, que avista um barco com uma carranca na proa. Esse encontro, que foi quase uma visão, conecta as duas em uma fusão mística, mudando completamente a vida da artesã.
Ana então começa a fazer suas carrancas, a princípio reproduzindo-as em miniaturas acopladas aos barcos. O sucesso é tanto que com a evolução das demandas vai aperfeiçoando a técnica, a escala e os motivos das modelagens. Suas carrancas têm um diferencial romântico e trazem ainda mais magia a sua prática. Os olhos de suas obras são sempre furados, em homenagem ao seu companheiro, Zé Vicente, que tinha deficiência visual e sempre esteve ao seu lado. Como legado, ensinou suas duas filhas, Maria da Cruz e Ângela, que tocam o Centro de Arte Ana das Carrancas, em Petrolina – PE, e lá recebem visitantes, compradores e produzem suas peças.
Conheça mais sobre a Ana das Carrancas no link: https://crab.sebrae.com.br/ana-das-carrancas/

Em Alagoas, Jasson inova em suas carrancas coloridas
Descendo o Rio São Francisco, no estado de Alagoas, mais precisamente na cidade de Belo Monte, vive Jasson. Esse é o artesão que fala através das cores e dos encaixes geométricos de figuras cotidianas, dando formatos exagerados, retorcidos e recortados aos seus personagens. Muito conhecido pelas suas cadeiras-trono-obras-de-arte, Jasson também desenvolve carrancas únicas e com uma leitura contemporânea dessa figura tão tradicional.
O artesão tem uma liberdade criativa metódica, em uma caixa guarda orelhas, línguas e pequenos pássaros feitos previamente. Ao esculpir os blocos de madeira vai testando qual parte do corpo melhor compõe sua criação. As suas carrancas têm orelhas enorme, línguas protuberantes e, muitas vezes, com os pássaros na ponta. Estas partes são colocadas através de encaixes de pregos e furos, sem cola, para facilitar o envio ou para levar para as feiras, design estrutural que traz mais durabilidade às peças.
Seu universo é colorido, com um jogo de cores fino e sofisticado, que nascem a partir de sua intuição e vivência em seu território. Em suas carrancas não é diferente, gosta das combinações vivas, chocantes, contrastantes e que trazem muito conforto aos olhos. Como toda carranca, não passam despercebidas.

Boni Pereira continua a tradição de Pirapora – MG produzindo carrancas artesanais.
Bonifácia Pereira dos Santos, ou apenas Boni, tem a tranquilidade de uma alma artesã grandiosa. Através de suas mãos esculpe grandes carracas, herança da prática familiar e local. Nascida em São Romão, mudou-se para Pirapora, Minas Gerais, ainda criança. A partir dos 8 anos já esculpia carrancas. Adulta, interrompeu a produção para trabalhar com outros ofícios, mas após se aposentar retomou a produção, em um galpão no bairro de Vila Branca. Ao resgatar o entalhe de carrancas, honra sua infância e a memória de seus pais. Afirma que ser carranqueira é muito mais pela paixão às peças, já que acredita ser uma produção pouco valorizada comparada a complexa técnica aplicada em suas obras.

A força da carranca, símbolo nacional
As carrancas estão espelhadas pelo país e no coração dos brasileiros fazem morada. Protegem lares, trabalhos, e locais preciosos. Atualmente fora das águas, são guardiãs do povo e espantam maus espíritos que ousam adentrar os espaços de resguardo ou atividades. Feitas por brasileiros para brasileiros, as Carrancas são um grande símbolo nacional, sua história merece ser exaltada e os artesãos muito valorizados.
Referências
https://www.memoriatamboril.com/gelson-xavier-s-perfil
https://www.pirapora.mg.gov.br/2021/09/16/artesaos-de-pirapora-participarao-da-casacor-principal-evento-de-arquitetura-e-decoracao-do-continente/
https://www.memoriatamboril.com/bonif%C3%A1cia-pereira-s-perfil
https://cbhsaofrancisco.org.br/noticias/cultura_blog/a-lenda-do-nego-dagua/
https://museudopontal.org.br/acervo/mestre-guarany-2/
https://www.artesanatodepernambuco.pe.gov.br/pt/mestres/bitinho-mestre/mestre
https://www.ifch.unicamp.br/eha/atas/2013/Luiz%20Severino%20da%20Silva%20Jr..pdf
https://www.youtube.com/watch?v=l-LOk4_PqOY
Referência fotos:
Imagem da Internet: Marcel Gautherot, 1948, IMS. Disponível em: https://ims.com.br/wp-content/uploads/2017/06/guarani-640×360.jpg Acesso em: 03 de set. 2025.
Imagem da Internet: Vire carranca para defender o Velho Chico, 2020. Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1059413724474301&id=482966838785662&set=a.489866951428984 Acesso em: 03 de set. 2025.
Imagem da Internet: Mestre Guarany. Disponível em: https://artepopularbrasil.blogspot.com/2011/01/mestre-guarany.html Acesso em: 03 de set. 2025.
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Imagem da Internet: Catálogo das Artes. Disponível em: https://www.catalogodasartes.com.br/obra/DeUGDAz/ Acesso em: 03 de set. 2025.
Imagem da Internet: Metre Bitinho. Disponível em: https://www.artesanatodepernambuco.pe.gov.br/pt/mestres/bitinho-mestre/mestre Acesso em: 03 de set. 2025.
Imagem da Internet: A Fuga do King Kong. Disponível em: https://blogfilmes.com.br/filmes/a-fuga-de-king-kong-king-kong-escapes/ Acesso em: 03 de set. 2025.
Imagem da Internet: Ana das Carrancas. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2023/03/15/ana-das-carrancas-artista-que-transformou-a-tradicao-em-arte-completaria-100-anos-em-2023/ Acesso em: 03 de set. 2025.
Imagem da Internet: Loja Paiol. Disponível em: https://www.facebook.com/lojapaiol/photos/arteo-processo-de-cria%C3%A7%C3%A3o-das-carrancas-em-madeira-do-artista-jasson-transita-nu/3341423239210180/ Acesso em: 03 de set. 2025.
Imagem da Internet: Instagram Boni Pereira. Disponível em: https://www.instagram.com/p/C4-x2YyOtgD/ Acesso em: 03 de set. 2025.