Ana das Carrancas, também conhecida como Ana Leopoldina dos Santos, nasceu em 18 de fevereiro de 1923, em Santa Filomena, Pernambuco, onde desde cedo cultivou sua intimidade com a arte do barro, uma tradição enraizada no artesanato brasileiro. O ofício foi passado de geração a geração, quando começou a aprender a moldar o barro com sua mãe, Maria das Carrancas, uma renomada artesã da região. Esse legado familiar tornou Ana uma referência no artesanato de barro, destacando-se também por suas emblemáticas carrancas.

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“Meu sangue é negro, mas minha alma é de barro”: O início da trajetória das carrancas

Antes de ser conhecida como Ana das Carrancas, a artesã tornou-se famosa pela produção de panelas e outros utensílios de cerâmica, e era chamada de Ana Louceira. Após se tornar viúva com duas filhas pequenas, Ana se casou com José Vicente, e continuaram morando no Sertão do Araripe. Porém, a vida não era nada fácil enfrentando longos períodos de estiagem nordestinos. Então em 1954, Ana e as filhas se mudaram para Petrolina em busca de uma vida melhor.

As vendas das loiças começaram, entretanto, a cair, e a família começou a passar por mais dificuldades. Buscando uma vida melhor, Ana fez uma oração invocando São Francisco, já que era muito católica, pedindo por iluminação. No dia seguinte, ao encontrar um barqueiro que contou histórias sobre as carrancas de madeira usadas pelos pescadores do Rio São Francisco para enfrentar as tormentas da pesca, Ana sentiu que era uma graça recebida do Santo. Inspirada pelas carrancas antigas, a artesã decidiu se reinventar e começou a fazer suas próprias carrancas de barro, dando início a uma nova fase em sua arte.

A partir de 1963, Ana iniciou sua jornada na produção de carrancas  com uma grande demanda para a inauguração da Biblioteca Municipal, distribuindo-as como souvenirs. Sua primeira peça, a carranca cangula, era composta por um barco, um velho vendedor de jerimum, com um menino ajudante, bolinhos representando os jerimuns, uma cobertura de palha e a carranca na proa do barco. Ana acreditava que essa invenção havia dado sorte para sua família. A cangula fez muito sucesso e continua sendo produzida até hoje.

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As carrancas de Ana eram a representação de seu profundo amor pelo Rio São Francisco, e ela as moldava com um misto de homem e animal, variando em forma e material, mas sempre mantendo o zoomorfismo. As carrancas refletiam o amor, o humor, o momento de Ana, através do olhar e das orelhas das obras.

A artesã só passou a ser chamada de Ana das Carrancas em 1970, quando suas carrancas começaram a ganhar força e tornaram-se muito disputadas, inclusive devido ao trabalho de pesquisa sobre o artesanato pernambucano realizado por técnicos em turismo como Olímpio Bonald Neto e Francisco Bandeira de Melo, a serviço da Fundarpe.

Em 1973, as peças passaram a ter um marco importante: a perfuração nos olhos, um tributo a seu marido que era cego de nascença, ganhando destaque nacional e internacional.

Ana das Carrancas e sua influência na arte do barro

Ana foi um divisor de águas na arte das carrancas. Antes dela, poucas pessoas trabalhavam fazendo esse objeto. Depois de seu sucesso, diversos artesãos se inspiraram em Ana e passaram a fazer as carrancas até mesmo com outros materiais, inclusive voltando às origens das carrancas de madeira.

No ano 2000, Ana conquistou o título de cidadã petrolinense. Com aprovação do governo e através da Lei Rouanet, foi criado o Centro de Arte e Cultura Ana das Carrancas, uma instituição de caráter privado, sem fins lucrativos, cujo objetivo é incentivar e difundir a preservação, o resgate e o intercâmbio da arte e da cultura, realizando de seminários, encontros, e cursos em produção cultural de artesanato. O Centro existe até hoje e se tornou um dos pontos turísticos da cidade. Ele está sob o comando das filhas de Ana: Maria da Cruz e  Ângela de Lima; e fica aberto de segunda a sexta das 9:00 às 17:00 e aos sábados das 9:00 ao meio-dia.

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Ana das Carrancas se tornou uma artista popular internacionalmente conhecida e foi homenageada com títulos como:

  • a Ordem do Mérito Cultural – a comenda mais alta que um artista popular pode receber na nação, através do Ministério da Cultura – em 2005
  • foi considerada Patrimônio Vivo de Pernambuco – em 2006

 

Sua arte cruzou fronteiras, conquistando admiradores ao redor do mundo, e suas carrancas estão presentes em galerias, museus e coleções particulares. Assim como ela aprendeu o ofício com a mãe, Ana passou seu amor e habilidade na arte do barro para suas filhas Maria e  Angela, que seguiram sua paixão por criar peças rústicas e diversas em barro. Ela considerava sua arte uma herança valiosa que não deveria ser esquecida, e desejava que suas filhas e seguidores continuassem a perpetuá-la mesmo após sua partida. Maria da Cruz perpetua o trabalho de sua mãe, criando as carrancas de diversos tamanhos; Angela, por sua vez, entrega uma releitura das carrancas com mandalas, quadros e tecidos com desenhos da carranca.

 

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De 2018 para 2023, a visibilidade das carrancas aumentou devido à exposição em feiras como a Fenearte, uma das maiores feiras de artesanato da América Latina, divulgação em redes sociais como o Instagram, turistas e estudantes visitando o Centro e encomendas.

Centenário Ana das Carrancas 2023

Em 2023, Ana das Carrancas estaria completando 100 anos e seu centenário foi comemorado de diversas formas. O Festival de Artes do Vale do São Francisco, pelo SESC Petrolina, tem como objetivo trabalhar a cultura durante todo o mês de agosto, e nesse ano fizeram uma homenagem à artesã. Além disso, no centro da cidade, Maria e Angela foram chamadas para receber a homenagem à mãe, quando receberam um presente feito por uma artesã da região: uma boneca de Ana das Carrancas fazendo uma carranca. A homenagem também contou com uma exposição das obras das duas filhas de Ana das Carrancas.

O Centenário também foi comemorado, através da Fenearte, no Centro de Referência do Artesanato Brasileiro (CRAB) onde foi realizado o Papo CRAB Memória em Movimento. Maria e Angela conversaram sobre a trajetória da mãe e como elas dão continuidade ao legado de Ana das Carrancas.

O legado de Ana das Carrancas, perpetuado por sua filha Maria da Cruz, é uma demonstração de como o amor à arte e a tradição podem perdurar através das gerações. Suas carrancas, impregnadas de mistério, lendas e mitos, continuam a influenciar a cultura popular e o artesanato pernambucano e brasileiro, mantendo viva a eternidade de sua arte. Como ela mesma disse, “Quando Jesus me chamar, espero estar preparada para viajar. Mas onde encontrarem o caco de uma orelha de barro, digam ao menos que Ana passou por aqui e deixou saudades”.

Referências:

https://www.brasildefato.com.br/2023/03/15/ana-das-carrancas-artista-que-transformou-a-tradicao-em-arte-completaria-100-anos-em-2023

https://www.guiadasartes.com.br/ana-leopoldina-santos/obras-e-biografia%20https://anadascarrancas.wordpress.com/ana-das-carrancas/

 https://www.cultura.pe.gov.br/pagina/patrimonio-cultural/imaterial/patrimonios-vivos/ana-das-carrancas/