Conheça como a cerâmica se manifesta em Icoaraci através da história da família Sant’ana e como matéria prima, saberes ancestrais e criatividade estão conectados ao território.
Conversa Fiada é uma série de entrevistas com pessoas que trazem pontos de vistas inventivos sobre a relação com o fazer artesanal e sua rede. São artesãos inovadores, artistas visuais, designers, pesquisadores, criativos, professores e muitas outras pessoas que estão pensando sobre e fazendo artesanato, trazendo desafios, soluções e inovações para o setor.
Nesta Conversa Fiada entrevistamos a Maynara Sant’ana, comunicadora e ativista afro-amazônida, e atua no Ateliê Família Santana formado com seus pais e esposo, em Icoaraci, Belém – PA. A paraense compartilha conhecimentos históricos, tradicionais e tecnológicos e encontrou na comunicação a forma de fazer a ponte entre a tradição local e familiar com o mundo. Seja na pesquisa, na condução das visitas ou nas redes sociais, Maynara transmite com muita paixão a história da cerâmica local e de sua família.
Esta entrevista é a primeira de uma série especial, conduzida pela especialista do CRAB Alice Meditsch, com participantes do III Seminário “Mãos que Promovem o Brasil”, que também fizeram parte do Mosaico Amazônia Legal, o Mapeamento Cultural do Artesanato Brasileiro. Para saber mais sobre o projeto, baixe nosso e-book em: https://crab.sebrae.com.br/mosaico-amazonia-legal
A seguir conheça mais sobre Maynara nessa conversa carregada de conhecimento

A cerâmica amazônica carrega o tempo como resposta da reconexão das gerações.
Maynara Santana:
Venho de Belém, Pará, norte do país. Sou a terceira geração de uma família que trabalha com cerâmica há mais de 50 anos. Icoaraci é um território maravilhoso de conhecer. É um lugar margeado por rios e essa característica deu de presente para a gente a possibilidade de ter um polo ceramista. A gente trabalha há 150 anos com isso, então é um lugar que tem muita cultura.
Além do barro, tem muito cordão de bicho, que é uma tradição cultural de festas e de óperas populares de rua, muito carimbó, com um lugar tradicional chamado Espaço Cultural Coisas de Negro, tem Tecnomelody, Rock Doido. É periférico de maneira geral, então você vê essa cultura pulsante, muito viva!
Alice:
Queria ouvir você sobre o tempo, algo que você traz no nosso vídeo do Mosaico da Amazônia Legal. Como vocês têm trabalhado essa tentativa de junção de opostos: o tempo do barro e o tempo que a juventude tem se movido?
Maynara:
O barro, ele tem mesmo essa questão química de aterrar você e deixar dentro de um compasso. Meu pai (Mestre Guilherme) tem uma fala muito mansa, serena. Ele tem um compasso que é o dele, o compasso do barro. Antes eu chegava lá acelerada, dizendo que precisava fazer isso, que tinha uma encomenda tal, ele me olhava e dizia: “não vai dar, Maynara”.

O barro é um grande professor, porque se você tenta acelerar o processo, a peça quebra e leva todo mundo que está do lado dela. Ele é muito filosófico, né? Te ensina muito, se você aprender a escutá-lo. O Sebá, meu marido, sempre fala nos cursos que não vai ensinar ninguém a manusear o barro, ele vai reativar uma memória.

Edith Pereira, estudiosa de cerâmica arqueológica, tem um livro que fala sobre o povo que antecedeu os Tupis. Eles possivelmente eram todos ceramistas. Então a gente, possivelmente, descende do povo ceramista.
Eu acho que a juventude tem essa necessidade de que as coisas aconteçam para ontem, mas também acho que é muito um vício da tecnologia, porque a nossa cabeça ancestral continua funcionando da mesma maneira. Se você tenta fazer uma coisa acelerada, no final do processo, você tá aqui, louco!
Na ilha do Marajó, um lugar encantado, uma das imagens que eu mais tenho e que me emociona muito é que a grande maioria das mulheres que trabalham lá, negras, trabalham num compasso muito desacelerado. Você chega lá, elas conversam, fazem e produzem tudo com calma. Eu podia ter nascido no Marajó, mas não. Eu sou de uma área urbana, sou um tajá da Amazônia, mas do asfalto, essa planta protetiva, muito encontrada nas regiões de mangue. Tem um monte no quintal de casa. A gente entende a nossa origem, o nosso território, a partir daí a gente começa a encontrar o nosso ritmo.
Paracuri, bairro de Icoaraci, tem uma produção centenária na arte cerâmica. Em 1996, foi criado um Liceu, Escola de Artes e Ofício mestre Raimundo Cardoso. Além do ensino formal, tinha um núcleo de arte para trabalhar educação focada na cerâmica. Os primeiros anos foram maravilhosos, o Liceu conseguiu realmente cumprir o papel para o que foi feito. Mas depois disso, entra outro governo, sai, aí os interesses vão se diluindo. O meu pai, ele tem esse processo educativo porque trabalhou durante 18 anos no Liceu, ajudando a elaborar diversos projetos. O Etnoconexões da Matemática à Cerâmica, era um projeto para ensinar formas geométricas para os alunos através do barro. Essa é uma forma de você diminuir distâncias e acabar prendendo o interesse da juventude.

A cerâmica Família Santana é um ponto fora da curva. Infelizmente a gente não é a regra de dentro da comunidade. Ainda hoje alguns ceramistas sobrevivem da reprodução da cerâmica. Durante muitos anos enviamos a cerâmica para todo mundo. Quando você trabalha num processo de escala, você acaba tirando a alma do artesanato. Reproduz sem saber o que você está fazendo. E foi isso que aconteceu em Icoaraci. Acho que hoje é muito importante retomar o trabalho com a comunidade. Eu já não vejo mais como um trabalho especialmente de pai para filho, como é tradicionalmente no artesanato. Lá na loja a gente tem o processo das oficinas. Vejo muita gente interessada, jovens. A gente precisa é adaptar essa linguagem para que as pessoas consigam trazer para a sua realidade e entender como que elas podem resgatar esse sentimento de pertencimento.
Eu não acredito e nem admito que uma pessoa amazônida fale que não gosta de cerâmica amazônida. O que acontece é que você não conhece de onde você vem. Quando você é uma árvore que não está enraizada, você não tem noção do poder que tem na sua mão. Aí entra a cerâmica. A gente a utiliza como uma ferramenta de autoestima, para entender que descende de um povo que construiu a Amazônia, uma floresta manejada. É um povo que tem uma conexão muito profunda e cosmológica com a Terra. E você tem um presente na sua mão.
A cerâmica que é feita na Amazônia, tem muitos formatos geométricos e funciona como essa cápsula do tempo. Conseguimos deduzir o que era importante para o povo que criou as cerâmicas há milhares de anos através das formas e grafismos. Entender como eles se conectavam com a Terra, qual era a força dos animais que eles queriam trazer para dentro da sua vida, como que eles se conectavam e faziam ciência braba, profunda, complexa, que não precisa de um microscópio, você consegue intuir, consegue sonhar com aquilo que você está fazendo. É realmente um processo educativo. A gente só precisa entender como que vamos alinhar essa comunicação para que as pessoas realmente se sintam pertencentes, com autoestima suficiente a ponto de bater no peito e dizer: eu sou amazônica, com orgulho e eu vou preservar essa cultura que é minha, que é nossa.

Como a conexão jovem através da comunicação dá suporte ao artesanato.
Alice:
E como que foi esse processo de autoestima e pertencimento para você?
Maynara:
Eu cresci num processo de desvalorização. Eu vi meu pai vender cerâmica por centavos, para conseguir manter. Escolhi outra área, sou formada em nutrição e no meu último ano de faculdade conheci o Sebá, um grande presente das divindades que me fizeram voltar para casa e encontrar o meu processo dentro da cerâmica, que não é modelando. Gosto muito de usar a cerâmica para modelar como uma forma terapêutica. Mas se eu tiver que fazer aquilo sempre, eu não vou gostar. Consegui encontrar o meu processo através da comunicação.
Eu amo falar sobre o poder da cerâmica e o quanto que ela é importante para a gente construir essa ponte entre o passado e o presente para construir o futuro. Ela me deu essa possibilidade de me encontrar numa forma fortalecida, sabe? O meu lugar no mundo, que é retornando para casa. Às vezes a gente quer procurar fora, mas está tudo aqui dentro, no meu caso, literalmente dentro da minha casa.
Alice:
A ideia do Conversa Fiada é a gente conversar com profissionais para pensar as outras formas de conexão com o artesanato que não necessariamente é através dessas manualidades. Então é muito legal te escutar falando isso, como jovem, enquanto comunicadora e ativista, tem contribuído para o artesanato. Me conta um pouco dessa parte da comunicação, o que você tem feito, quais projetos tem criado e te motivado?
Maynara:
Eu sou ativista preta desde jovem. Acho que foi dentro do movimento negro que eu consegui reconhecer essa minha potência no trabalho. Eu venho de uma família de mulheres, mas que durante a sua vida foram silenciadas. A minha avó não consegue falar em público, minha mãe não consegue impostar a voz dela. Hoje a gente está fazendo diversos trabalhos de capacitação, de cursos, e ela já consegue receber as pessoas dentro da loja, conversar e trocar ideia, falar sobre o produto. Fico super orgulhosa!

Mulheres Família Sant’ana. Foto: Carol Quintanilha
Eu fiz teatro durante alguns anos, que me colocou em um caminho. Quis começar a trabalhar com cerâmica e fiquei extremamente frustrada, porque não era isso. Meu marido falava: “Amor, tu é uma comunicadora, cara. Faz o que tu veio fazer”. É muito legal, inclusive, trabalhar em família porque todo mundo está torcendo para que tu te encontres. Saber que todo mundo ali está torcendo para que eu me desenvolva. E aí eu comecei nesse processo de comunicação, focado, falando sobre os processos da cerâmica, levando conhecimento para as pessoas, principalmente do local. A gente acha super importante que o nosso primeiro público seja a nossa própria comunidade: Belém do Pará, região metropolitana, ilhas. Depois a gente vai expandindo conforme vamos entendendo se faz sentido, diferente da maioria dos artesãos ceramistas da região.

O artesanato cerâmico, ele sempre foi voltado para um público de fora, porque subentende-se que tem um poder aquisitivo maior, mas que também é temporal. O paraense não. O paraense quer levar um pedaço da história dele para casa dele e além de comprar, vai falar para todo mundo, vai se tornar uma espécie de defensor da tua marca. A gente percebe que a galera tá vibrando por nós, cada conquista comemora junto. E aí a comunicação voltada para as redes sociais é muito importante porque dá essa cola emocional, junta a gente, cria conexão. Eu trabalho diretamente com isso, tanto as visitações guiadas, os cursos sobre a cerâmica de Icoaraci e a influência das cerâmicas originárias no nosso trabalho. É muito trabalho de pesquisa. Eu sou apaixonada por iconografia.

Tem duas coisas que eu posso te dizer que são a base para aquilo que a gente faz, além do conhecimento técnico: a comunicação e a inovação. E a inovação é brincar, a gente se diverte com o que faz.
Cerâmica: uma ciência ancestral que nos guia para um futuro mais presente.
Alice:
Você falou de ciência ancestral. O que é tecnologia para você?
Maynara:
A cerâmica possivelmente é a tecnologia mais antiga criada pela humanidade. Não à toa, há muitas histórias que vêm tentar dar conta de explicar. A criação da humanidade traz a cerâmica como esse elemento principal. Deus é o primeiro oleiro, Ele criou o homem através do barro. Nanã, que é a primeira yabá, a mais velha, ela emprestou a sua lama para que Oxalá criasse a humanidade. É por isso que quando a gente morre, a gente se encanta, volta para a Terra.
A cerâmica possibilitou diversos saltos dentro da humanidade. A partir da criação dos potes, do alguidar, dos lugares que a gente poderia armazenar os nossos alimentos, o homem pode sair da condição de nômade, criar essa sociedade, como conhecemos hoje. Se isso foi bom, eu não sei, mas acho que quando eu penso em tecnologia, penso em algo que vem para facilitar a nossa vida. O barro está presente em diversos contextos, é utilizado cerâmica até para a criação de nave espacial. Então é um mundo! Ao mesmo tempo, agora a gente está sendo invadido por diversas tecnologias que, supostamente, vêm para o nosso benefício. Faço um trabalho que eu passaria o dia inteiro para fazer em só uma hora. Depois eu vou para a praia, ver meus filhos, minha família? Não, eu vou atrás de mais trabalho, entendeu? A mãe do Sebá mora em Mosqueiro, numa praia que tem um quintal, que é a praia. Às vezes descemos para lá para focar, e vamos atrás de barro laranja, que te traz essa força. Passamos o barro laranja na cara, às vezes para acalmar usamos o barro branco, fazemos um banho. Ailton Krenak fala isso, né? Tem um texto lindo que ele fala que a vida é essa dança cósmica, brilhante, fluida, mas que a gente reduz a uma dança utilitária, trabalhar oito horas por dia, cinco dias por semana, folgar e ter um respiro de duas vezes para sair dessa realidade. Daqui a pouco, quando a gente vê, a vida passou e a gente não tem história para contar.
Alice:
Como são as criações na sua família? Quais são esses produtos cheios de história?
Maynara:
Eu acho que cada um dos criativos, meu pai, Sebá e minha mãe (Mestra Marly) tem um caminho. Então, cada um tem uma peça. Meu pai são as formas geométricas de mandalas. É muito lindo todo o processo, encantador. O Sebastian trabalha muito com iluminação. Então cria a partir dessa junção da cerâmica com a luz. Minha mãe é super religiosa, sempre faz questão de criar a peça dela do Círio de Nossa Senhora de Nazaré. Esse ano foi um terço lindo que ela fez em parceria com a amiga, tia Vera. Todo feito de corda natural, com todas as pontas de cerâmica. Mas a gente vive o Círio o ano inteiro de outubro para cá, é muito mais.

Alice:
Falando em Círio, como que a religiosidade se manifesta na produção da tua família de modo geral?
Maynara:
Ah, menina, a gente é puro suco de Brasil! Os meus pais, eles são cristãos, muito católicos, mas respeitam todo e qualquer tipo de religião. A Nossa Senhora de Nazaré, para a Igreja Católica, é a divindade mãe de Jesus. Eu enxergo Nossa Senhora de Nazaré como uma grande encantaria. Para mim, ela poderia ser perfeitamente uma Oxum que veio ali da beira do rio, que traz esse olhar materno. E aí a gente acaba confluindo dentro desse olhar. Eu acho que a gente, brasileiro, de maneira geral, não dá para falar que acredita num só Deus. A gente tem mesmo as pessoas que são católicas tradicionais, que tem Deus, mas tem um monte de santo. Então esse politeísmo para a gente é muito natural. Para mim, por exemplo, é muito importante cultuar Nossa Senhora de Nazaré, mas fazer um xibá para Dona Jarina, que faz parte do tambor de mina, uma religião de matriz africana, criada no norte do país, presente no Pará e Maranhão. Então, a cerâmica, por ser essa matéria primeira, é muito utilizada nos cultos religiosos de matriz africana. Trabalhar com cerâmica para os povos ancestrais, de matriz, eu enxergo mesmo como um lugar de oferenda da minha parte para eles, e adoro fazer isso. Os cultos no norte são afropindorâmicos. Então existe muito encantado, os boiadeiros, ciganas, o povo da mata. É tudo misturado e eu acredito em tudo.

De forma prática, existe essa questão da reprodução do artista com a sua sensibilidade, e a gente está falando de religiosidade num outro plano, num outro tipo de conexão. São os ancestrais dizendo como é que precisa ser feito. A cerâmica de Icoaraci, por exemplo. Ela originalmente é uma cerâmica lisa, utilitária. O grafismo chegou na década de 70 e se hoje você pergunta para qualquer mestre o que caracteriza a cerâmica de Icoaraci, ele vai dizer: o grafismo. Porque foi absorvido de uma forma tão orgânica, tão genuína, que faz parte do nosso DNA. Eu acredito de verdade que é a ancestralidade falando com a gente que precisa ser feito daquela maneira.
A cerâmica de Icoaraci é um caldeirão intercultural que agrega parcerias e inovações.
Alice:
Então, pegar esse gancho do grafismo, como foi esse resgate dos elementos que são representados nas cerâmicas de vocês?
Maynara:
A cerâmica de Icoaraci é um caldeirão intercultural. Pegamos as peças que são feitas dentro de uma tecnologia espanhola, que é o torno, nos dá escala, e misturamos com as iconografias das cerâmicas originárias, das figuras rupestres que são encontradas nas pedras. Junta tudo isso, mexe bem, e faz a cerâmica de Icoaraci. A gente gosta muito de moda, então é muito legal você vestir o seu pertencimento. A partir disso, a gente vai criando ornamentos que são amuletos.

Alice:
Falando em moda, como foi a criação dessa peça? (quimono que Maynara veste)
Maynara:
Foi o primeiro trabalho do meu marido. Ele é desenhista de formação, mas deu uma travada quando foi fazer porque moda é uma outra coisa, né? A Stephanie, que é a dona da marca (Cabidê), pegou na mão dele e criaram juntos. É um entrelaçamento de moda, artesanato e todos os materiais.
Alice:
Para finalizar, sobre outras criações mais recentes, algum outro projeto que você destaca?
Maynara:
A gente trabalha muito com parcerias. Uma delas é a Cipó Velas, que trabalha com memórias olfativas, de forma desacelerada, com ceras vegetais, essências da Amazônia. Nós produzimos todos os potes das embalagens da linha de cerâmica dela. Temos várias parcerias com designers de joias. A Naisha Cardoso tem uma linha chamada Pérolas Silenciosas, um conceito super legal. É o antifone. Criamos uma peça que lembra um pouco o formato da caixinha do iPhone, carimbada com todas as informações. A carimbagem é uma tecnologia que estamos há uns quatro anos estudando, um processo que dá escala, sem precisar estar desenhando todo tempo. Entender a importância de utilizar os grafismos de maneira respeitosa e pontual, para que eles não percam o seu significado. A gente mistura a cerâmica com vidro também, que fica super legal.
Tem uma peça que é muito bacana, que a gente já tinha visto em madeira, que é uma caixa de som, de amplificar o som do celular. A cerâmica performa super bem, porque barro é um condutor. Deu tão certo que a comunidade toda está reproduzindo.
Alice:
É a JBL analógica.
Maynara:
Tecnologia Ancestral, rapaz!






