Raízes visíveis: a arquitetura vernacular no Norte e Nordeste do Brasil
Design vernacular desenvolvido através de técnicas tradicionais e materiais da própria região Norte (Foto: Juan Gabriel Soler, 2024)
A arquitetura das regiões Norte e Nordeste do Brasil é, antes de tudo, uma expressão viva da mistura cultural que nos caracteriza: saberes indígenas, técnicas africanas, traços europeus – tudo reinterpretado à luz dos climas extremos, da abundância ou escassez de certos materiais e da resiliência das comunidades locais. Para explorar culturalmente este mosaico, é preciso entender que a pluralidade cultural do Brasil encerra em si a memória e as tradições de uma nação diversa, sobrevivente às tendências contemporâneas e resistente à passagem do tempo.
Na arquitetura, pulsa um reencontro mágico entre o contemporâneo e o ancestral, entre o desenho racional e o fazer intuitivo, entre o profissional urbano e o mestre popular. Tal arquitetura vernacular não se limita a um estilo ou a uma escola; ela nasce do chão e para ele retorna. E é a partir dessas raízes que o Norte e o Nordeste do Brasil vêm redefinindo o próprio futuro de seus espaços construídos.
O design vernacular, termo que remete à linguagem da terra, ao saber de cada lugar, ao ofício aprendido pela transmissão oral e pelo corpo, encontra uma de suas expressões mais vibrantes nas regiões amazônicas e nordestinas. Ali, onde o território impõe seus próprios códigos – a umidade, a seca, o calor, o alagamento, o vento –, a construção é uma resposta não apenas funcional, mas simbólica. É um modo de viver que se transforma em modo de habitar. E, nesse movimento, o artesanato, por muito tempo considerado periférico ao design ou à arquitetura, ocupa agora um papel central: o de inteligência material, memória estética e potência identitária.
Arquitetura vernacular: conexão entre a ancestralidade e a inovação
Arquiteto Gabriel Fernandes ressignifica a casa caipira brasileira na CASACOR SP 2024 (Foto: MCA Estúdio, 2024)
Não se trata de resgate, mas de reconexão. Projetos recentes mostram como arquitetos, designers e instituições estão se aproximando dos mestres artesãos: não para reinterpretá-los em chave autoral, mas para dialogar com seus processos, incorporando suas técnicas e valores à criação de espaços. Essa virada tem se tornado visível em iniciativas públicas, como os centros de artesanato e as Casas do Artesão, e também em mostras de arquitetura como a CasaCor, onde ambientes inteiros são estruturados a partir de cerâmicas, trançados, rendas e móveis criados por comunidades tradicionais. Não é mais possível falar de inovação na arquitetura brasileira sem incluir os saberes que brotam das raízes culturais desses territórios.
Em todo o país, arquitetos e escritórios começam a abandonar os modelos importados para reconhecer o valor das soluções criadas por populações indígenas, quilombolas, camponesas e ribeirinhas. No Norte, por exemplo, a presença indígena é central. Povos originários desenvolveram ao longo de milênios técnicas construtivas ajustadas ao ambiente tropical úmido: malocas circulares de palha e madeira, casas comunitárias, estruturas elevadas para lidar com as inundações sazonais. Mesmo hoje, em comunidades ribeirinhas do Amazonas e do Pará, as casas seguem sendo erguidas com tábuas sobre palafitas, cobertas por telhados de palha ou zinco, com grandes beirais e passadiços suspensos – soluções tão práticas quanto poéticas.
Construção artesanal ribeirinha (Foto: Jheff Cavalcante para Gua arquitetura, 2025)
Esse tipo de construção não é apenas funcional: é profundamente sensível ao território. O uso predominante da madeira – abundante na floresta – combinado com fibras vegetais, palha e barro, revela uma inteligência ecológica de altíssimo nível. Essa arquitetura persiste não por falta de opção, mas por sua eficácia, beleza e pertinência. Em tempos de crise climática, são justamente essas técnicas que vêm sendo revisitadas por projetos que aliam tradição e sustentabilidade.
No Nordeste, a lógica é semelhante, embora os materiais e desafios sejam outros. Nas zonas sertanejas e agrestes, o barro transformado em adobe, taipa de pilão ou pau-a-pique cumpre a função de isolar termicamente e resistir ao clima seco. Palha, pedra e madeira completam a paleta de materiais de uma arquitetura profundamente conectada ao bioma da caatinga. A sabedoria sertaneja sobre sombra, brisa e resfriamento natural é incorporada a cada gesto construtivo. E hoje, jovens arquitetos têm buscado nas mãos de mestres construtores como João Carlos Pires, em Pernambuco, e nas práticas coletivas de mutirão, um novo paradigma para o urbanismo rural brasileiro.
Arquitetura em cena: quando o fazer popular entra em mostras e vitrines
Casa do Artesão Design Mestre Albertino na 2ª edição da CasaCor Piauí, celebrando o talento de mais de 80 artesãos de diversas regiões do Piauí (Foto: Felipe Petrovsky, 2025)
Em Teresina, capital do Piauí, o governo estadual criou a Casa do Artesão Design Mestre Albertino, um espaço que é ao mesmo tempo loja, galeria e homenagem. Nomeada em honra a um dos mais célebres santeiros do estado, a casa abriga mais de 80 peças de artesãos locais — ceramistas, rendeiras, escultores de madeira e mestres da palha — curadas em diálogo com o design contemporâneo. Durante a CasaCor Piauí 2025, esse espaço tornou-se um dos eixos curatoriais do evento, reposicionando o artesanato como vetor de sofisticação, identidade e narrativa visual.
Sergipe seguiu caminho semelhante. Em outubro de 2024, foi inaugurado em Aracaju o contêiner-lounge da Casa do Artesanato Sergipano, um espaço projetado especialmente para a CasaCor. Rendas irlandesas, cerâmicas, objetos em crochê, palha, couro e xilogravuras — todos produzidos por mãos locais — foram integrados a 35 ambientes da mostra. O projeto, financiado com apoio do poder público e da sociedade civil, impactou diretamente a renda de mais de 5 mil artesãos. Entre os nomes em destaque estavam Neidieli Silva, da renda de Divina Pastora, e Lucimária dos Santos, ceramista de Laranjeiras.
Na Bahia, a “Casa Nordestesse”, realizada em parceria com a Secretaria de Turismo, reuniu mestres como a tecelã Célia Regina Amorim (Porto Seguro), o ceramista Argemiro Costa Neto (Maragogipinho) e a escultora Constância Carvalho (Serra Negra). As peças — de barro, palha, fibra e pano — foram tratadas como estruturas de um projeto espacial, não como ornamento. Cada trançado revelava a inteligência de uma técnica secular, cada escultura fazia as vezes de pilar simbólico do espaço.
Já o Ceará, por meio da CeArt, levou mais de 500 peças à CasaCor São Paulo 2024, com destaque para Espedito Seleiro, mestre do couro que ressignificou o cangaço como estética de resistência, e Francisco Graciano, o “Mozinho dos Bonecos”, criador de uma fauna onírica do sertão esculpida em madeira umburana. Ambos são exemplos de como os mestres populares vêm sendo acolhidos como artistas de linguagem global — com raízes profundas e alcance internacional.
Arquitetura construída: quando o saber vira espaço
Mirante do Gavião Amazon Lodge, na Amazônia. O projeto foi estruturado em um planejamento sustentável que prevê o aproveitamento do clima, materiais e tecnologias construtivas locais. (Fotos: Thais Antunes, 2014)
Na Amazônia, o Mirante do Gavião Amazon Lodge, projetado pelo Atelier O’Reilly, é um exemplo notável de arquitetura vernacular reinterpretada. O hotel foi construído por moradores locais, com madeira reflorestada e técnicas ancestrais de amarração com cipó. A estrutura lembra um barco invertido e abriga, além de quartos e salões, um viveiro, uma horta e sistemas de captação de água. Cada detalhe – do telhado de palha às varandas suspensas – é uma aula sobre adaptação e beleza enraizada.
Outro marco é a sede do Instituto Socioambiental (ISA) em Manaus, assinada pelo Brasil Arquitetura. Inspirado nas malocas indígenas, o edifício é leve, permeável, sombreado. Pilares em madeira, coberturas de palha piaçava e pátios internos fazem dele não apenas um espaço funcional, mas uma homenagem viva às soluções construtivas dos povos da floresta.
Barro, palha, madeira, couro, fibra — aquilo que por séculos foi chamado de “material pobre” agora aparece como matéria-prima de um Brasil que quer se reconhecer. O design vernacular é, antes de tudo, um projeto de futuro que nasce das mãos que conhecem a terra. E que hoje, enfim, têm voz e visibilidade para redesenhar o país que habitamos.
Uma paisagem que se ergue do território
Foto da exposição “Caboclos da Amazônia: arquitetura, design e música” designer paraense Carlos Alcantarino, a mostra celebra e ressalta a autêntica essência do rico universo da arquitetura, do design e das expressões artísticas do Estado do Pará (Foto: Carlos Alcantarino, 2024 )
A força do artesanato vernacular como base da arquitetura no Norte e Nordeste do Brasil é mais do que uma inspiração estética: é uma estratégia concreta de desenvolvimento local, sustentabilidade ambiental e fortalecimento da identidade cultural. Ao reconhecer o valor técnico, simbólico e econômico desses saberes, abrimos caminho para um país que cresce a partir de suas raízes — e não apesar delas.
Hoje, o design acredita no poder transformador do artesanato vernacular, tanto no campo da moradia quanto no turismo, no design e na economia criativa. Apoiar mestres construtores, artesãos, coletivos e projetos que atualizam essas práticas é, portanto, investir em inovação com alma, em produtos com território e em experiências com sentido.
Mais do que tendência, o artesanato vernacular é herança ativa. E, ao ser valorizado, transforma-se em alicerce de um Brasil mais justo, diverso e conectado com sua própria história.
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H6- Referências bibliográficas
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GOVERNO DO ESTADO DO PIAUÍ. Casa do Artesão Design Mestre Albertino reúne o melhor do artesanato piauiense na 2ª edição da CasaCor Piauí. Teresina: Governo do Estado do Piauí, 16 maio 2025. Disponível em: https://www.pi.gov.br. Acesso em: 13 jun. 2025.
GOVERNO DO ESTADO DO SERGIPE. Casa do Artesanato Sergipano é destaque na CasaCor 2024. Aracaju: Governo do Estado de Sergipe, 18 out. 2024. Disponível em: https://www.se.gov.br. Acesso em: 13 jun. 2025.
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