O Bloco da Latinha surgiu em 1996 na cidade de Madre de Deus, na Bahia. Uma iniciativa dos pescadores locais. Inicialmente batizado de “Cata Lata”, o bloco adquiriu esse nome devido à sua atividade de coleta, limpeza e reciclagem de latas de alumínio.
Os recursos provenientes desse trabalho eram destinados como doação ao Hospital do Câncer Aristides Maltez, localizado em Salvador. Esse hospital foi escolhido porque seu presidente e fundador, Aloísio, trabalhou na instituição na época em que a ideia do bloco surgiu.
Mais tarde, o bloco evoluiu para incluir um carro de apoio durante os desfiles e recebeu autorização da prefeitura para participar oficialmente do desfile da cidade. O bloco foi ganhando a popularidade e admiração dos moradores de Madre de Deus. Com isso, os membros do bloco começaram a usar as latas como parte de suas fantasias, pendurando-as em suas roupas para torná-las mais atrativas e chamar a atenção durante os desfiles. Isso incentivava as pessoas nas ruas a oferecerem suas latas aos integrantes do bloco em vez de descartá-las no chão. A quantidade de latas recolhidas aumentava a cada desfile, chegando ao ponto de necessitar de um caminhão para auxiliar na coleta. O bloco ganhou reconhecimento da Câmara Municipal de Madre de Deus devido ao trabalho educativo e sustentável empregado em seus desfiles.
Com a regularização da profissão de catador, o grupo começou a enfrentar dificuldades para coletar as latas. Nesse momento, ocorreu uma mudança significativa para os membros do bloco (então ainda denominado Bloco do Cata Lata), que deixaram de enxergar sentido em manter um bloco cujo único propósito era recolher latas pelas ruas durante o carnaval. No entanto, isso não impediu a continuidade do bloco, que se reinventou.
Em 2011, o bloco passou oficialmente a se chamar Bloco da Latinha, por sugestão do seu presidente fundador, Aloísio, que propôs que as latas fossem usadas para compor fantasias, uma ideia que encontrou apoio de outros membros, como Edval, que foi o idealizador do primeiro modelo de fantasia como é conhecida hoje, um macacão com latas por toda sua extensão. Naquele ano, nove pessoas saíram vestidas de “enlatados”, termo pelo qual se autodenominam os foliões do bloco por estarem cobertos da cabeça aos pés com latas, como relatado por Medeiros (2022).
O modelo adotado pelo grupo foi refinado ao longo dos anos e englobou toda a comunidade. Os membros passaram a concentrar suas atividades na coleta, limpeza e costura das latas nos macacões durante os meses que antecedem o carnaval. Esse processo é completamente artesanal e sustentável. Surpreendentemente, as fantasias podem incorporar mais de 1.000 latas, demonstrando o comprometimento e a criatividade do grupo.
O Recanto dos Pescadores é um ponto de encontro muito importante tanto para a produção das fantasias quanto para as celebrações após o término dos desfiles. É lá que grande parte das indumentárias é confeccionada, em um ambiente que respira criatividade e colaboração comunitária. Além disso, após os desfiles, o local se transforma em um espaço de comemoração, onde os membros do bloco se reúnem para compartilhar a alegria do carnaval e celebrar o sucesso de mais uma apresentação.
Para garantir uma aparência uniforme nas fantasias, foi estabelecido que o grupo sairia mascarado. A cada ano, as máscaras são renovadas, mudando de cor ou formato, e são confeccionadas artesanalmente pelo presidente do bloco e sua esposa. Essa tradição não apenas adiciona um toque único às fantasias, mas também fortalece o senso de identidade e coesão dentro do bloco.
O bloco tem ganhado reconhecimento não apenas em Madre de Deus, mas também em outras cidades como Salvador e Rio de Janeiro, expandindo sua atuação. Isso resultou em um aumento no número de participantes, com o bloco agora contando com mais de 20 pessoas, embora esse número possa variar a cada temporada de carnaval.
A produção das fantasias começa em dezembro do ano anterior, com cada membro sendo responsável por coletar as latas para suas respectivas fantasias. A confecção geralmente começa nas casas individuais de cada membro e, à medida que o momento do desfile se aproxima, todos se reúnem na sede do bloco para colaborar mutuamente. Aqueles que não sabem confeccionar têm a oportunidade de aprender com outros membros ou até mesmo pagar a outro membro para realizar o trabalho artesanal, garantindo que todos possam participar do desfile.
A comunidade se mobiliza para apoiar o bloco em todas as etapas, desde a produção das fantasias até os preparativos para o desfile, incluindo a aplicação das latas, a comida e a organização geral. Esse apoio é fundamental para garantir que o desfile ocorra com tranquilidade e sucesso.
O Bloco da Latinha busca ser o mais inclusivo possível, optando por realizar seu trajeto fora dos circuitos oficiais da cidade. Isso permite que aqueles impossibilitados de se deslocar possam apreciar essa rica manifestação cultural, que se tornou um verdadeiro patrimônio da cidade de Madre de Deus.
O Bloco da Latinha se tornou uma expressão cultural de grande importância na cidade, gerando expectativa na população a cada ano para o seu desfile e capturando a atenção daqueles que têm o privilégio de presenciá-lo. Hoje, os Enlatados de Madre de Deus não só encantam os moradores locais, mas também atraem turistas que vêm exclusivamente para assistir ao desfile do Bloco da Latinha. Essa crescente popularidade é um reflexo do impacto significativo que o bloco teve na comunidade local, e também na projeção da cultura e tradições da cidade para além de suas fronteiras.
Além de sua beleza estética, o desfile do Bloco da Latinha carrega uma importância que transcende o aspecto visual, promovendo uma discussão sobre o compromisso com a sustentabilidade. Não se trata apenas de uma exibição festiva, mas sim de uma intervenção que nos confronta com nossa realidade como consumidores e nos instiga à reflexão. O objetivo dos membros do bloco vai além do entretenimento: eles buscam promover a conscientização e deixar um legado para as próximas gerações, por meio da arte e da cultura.
Os “enlatados” de Madre de Deus tornaram-se figuras emblemáticas no imaginário popular regional, unindo a comunidade em torno de um movimento autêntico de apropriação do território. Ao abraçar causas nobres, como a sustentabilidade, eles transformam o carnaval de rua em uma celebração acessível, popular e genuína. Essa abordagem única demonstra como a cultura e a tradição podem ser poderosas ferramentas para inspirar mudanças positivas em nossa sociedade.
Fontes:
BLOCO DA LATINHA | A DAY AT BRAZILIAN CARNIVAL [canal de] Youtube de Louyse Gerardo.
Medeiros, L. G. de. Carnaval de latas: Um estudo fotoetnográfico sobre o Bloco da Latinha da comunidade de Madre de Deus na Bahia. In R. Ribeiro, E. Araújo, M. Silva & A. Fernandes (Eds.), Festividades, culturas e comunidades: Património e sustentabilidade Lisboa, 2022. UMinho Editora/Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade. 143-153.
Madre de Deus: bloco das latinhas desfila no carnaval. Baiana FM.