“O amor é lindo e é de graça!” Quem conhece o mestre Getúlio Damado e seu filho Victor sabe que essa é a filosofia que norteia suas vidas e obras. Muitas vezes escrita nos famosos corações da dupla, ambos cultivam a prática de olhar para o mundo de forma amorosa. Suas peças refletem isso, seja na temática, com casais e famílias de todos os gêneros, seja na matéria prima de resíduos urbanos, contribuindo para a cuidado com planeta.
Essa forma de lidar com suas peças lhes traz destaque no território de artistas, o bairro de Santa Teresa no Rio de Janeiro, aonde muitas pessoas vão até a região só para conhecer o ateliê e os artesãos. Ambos trabalham no Ateliê Chamego Bonzolândia, que se localiza no coração do bairro das artes na rua Leopoldo Fróes, número 15. É um espaço a céu aberto na calçada acima da rua Almirante Alexandrino, a principal rua dos bondes de Santa Teresa, que passam com frequência levando estrangeiros e moradores pelas ladeiras do bairro. As pessoas que descem as escadas para pegar o transporte sempre param para lhe dar uma palavra. O mestre Getúlio Damado é figura conhecida da região, quase um monumento vivo, todos do bairro o conhecem. Ele aprendeu a valorizar seu território e é valorizado por ele, em uma simbiose, Santa Teresa não seria a mesma sem o Mestre assim como ele não seria o mesmo sem o bairro. Essa fusão das características do bairro com a arte do artesão é importante marco para a originalidade das suas peças, sendo impossível de escapar aos olhos de quem passa já que a própria estrutura principal e “showroom” das peças é um bonde grande, em escala real, onde também guarda o material de suas obras.
A trajetória para chegar ali foi grande. Getúlio nasceu no interior de Minas Gerais, na cidade de Espera Feliz. Se mudou para o Rio de Janeiro com 16 anos para tentar encontrar sua família. Ao chegar foi morar na comunidade do Santo Amaro, na Glória, mas sempre frequentou Santa Teresa. Na comunidade já criava os seus personagens de reciclados para as crianças. Ao se mudar para o atual bairro começou a trabalhar em outras atividades como funilaria e venda de doces, no mesmo local que hoje se encontra seu ateliê. Os amigos de Santa começaram a lhe chamar de Bonzo, como uma brincadeira do personagem Bozo, e ele então fundou a Bonzolândia, sua barraca de doces. Hoje a Bonzolândia é sua marca pessoal e territorial. Levou seus filhos para Santa Teresa e quando seu Victor cresceu começou a ajudar o pai nas produções.
Artesanato com propósito e pulsão criativa latente
É possível encontrar a dupla praticamente todos os dias em seu local de trabalho, eles só não estão presentes quando vão participar de alguma exposição ou evento. Sua última exposição foi no Sesc de Três Rios, na qual teve que produzir 200 passarinhos em 60 dias. Ele então criou os pássaros da própria imaginação e seu filho brinca que ele é o único que faz os animais que voam com chifres. Suas criações mais livres são intuitivas, vão surgindo no momento que coloca as mãos no material. Sua maior inspiração “vem da cabeça”, mas também da natureza, pessoas e acontecimento do seu dia a dia, inclusive fala que a causa LGBTQIAPN+ faz sucesso e sempre cria casais ou famílias com pais homoafetivos.
Sua produção acontece a partir da criatividade, elementos do seu cotidiano, do seu fazer artístico e domínio da técnica. Os principais tipos de materiais que usa em suas produções são plásticos, madeira, prego e cola. Moradores trazem as peças de plástico e resíduos de seu dia a dia, assim Getúlio vai categorizando e organizando os materiais para serem usados, preferindo as coloridas e os plásticos moles, que não quebram ao serem marteladas. As madeiras são coletadas na rua e o que compram são os materiais de estrutura como pregos, cola branca, tintas e ferramentas. O resto é todo de reciclagem, faz questão de deixar isso bem claro, e preza pelo conceito de ecologia, fala sempre presente quando explica sobre sua produção.
Produz todos os dias peças diferentes, as mais elaboradas são as réplicas do bondinho de Santa Teresa, em que um médio leva um dia para finalizar a estrutura e depois ir para pintura, que é seu filho que faz. Mas também cria personagens mais simples que pela habilidade são produzidos em minutos. Tenta sempre fazer peças diferentes pois “agradar o público não é fácil”. Mas o bonde é seu carro chefe, ele lhe deu fama no bairro e fora dele. Praticamente todos os estabelecimentos comerciais em Santa Teresa tem pelo menos uma obra dessas nas paredes. Atualmente seus corações com a frase “O amor é lindo e é de graça” também têm sido bastante requisitados pelos lojistas e clientes. Getúlio conta que o coração é o único desenho que sabe fazer e que começou a desenhá-los para entregar para as meninas da sua escola.
Ao criar suas peças segue métodos já cotidianos, para as peças mais planas utiliza uma placa de madeira como base e fundo, onde martela os pedaços de plástico até formarem as figuras que deseja, muitas vezes criando camadas para trazer mais detalhes. Para as peças mais escultóricas, se utiliza de cola e prego, no caso dos bondes começa com eles em madeira crua, em que as medidas já têm de cabeça. Assim vai riscando alguns pedaços com caneta, depois serrando e limando. Quando o bonde está pronto é a etapa da pintura. Esta é feita, normalmente, por seu filho. Victor relata que quando tem tinta branca, o que considera ideal, passa de uma a duas demãos e então, quando seco, coloca as camadas de cor. Os corações são cortados em uma serra de fita que se localiza em sua casa e depois levados ao ateliê para pintura e finalização. Inicialmente eram feitos com chapas de metal, mas preferiram mudar para chapas de madeira. A serra de fita é a única ferramenta que não fica no ateliê e sim em sua residência e usa para fazer peças com formas mais específicas que não consegue fazer com o serrote.
A arte como espiritualidade
Mas para além da técnica, para o artesão “a arte tem uma ligação espiritual”. Assim se refere ao seu estilo de produção, quase como um sussurro na mente, as formas e cores se juntam em figuras divertidas. E é com esse conceito que também acredita que todos que desejam devem poder adquirir uma peça sua, o importante é fazer a conexão com a peça produzida, que atinge seu espírito. Entende não estar nessa vida por dinheiro e sempre que pode evidencia que “Ninguém vai ficar sem uma obra minha por causa de falta de dinheiro”, o que por muitas vezes o fez dar uma peça como presente para aqueles que não tem condição de pagar, mas demonstraram genuíno interesse.
Diz que muitas pessoas não entendem seu cotidiano dividido no fazer e no seu lazer e se pudesse fazia sua arte de graça. Sua arte não é mercadoria e isso mais uma vez fica evidente na forma como o tempo é manejado para sua produção. Em relação à prazos, Getúlio é categórico e não trabalha com definição de tempo para entregar suas encomendas, fato avisado quando recebe pedidos. Quando o fez sentiu seu trabalho limitado e sua vida também. Também não gosta de trabalhar com exclusividade, gosta da liberdade, sem amarras com galerias e lojas. Muitos já tentaram, mas ele não cede, expondo o Bem Viver que a sua produção lhe garante. Sua vida vai além de lógicas mercantilistas e se significa a partir de sua pulsão criativa. “Tudo que a gente faz é na sensação de que vai vender um dia, pode demorar, mas uma hora o cliente daquela obra aparece”. Victor então nos apresenta o termo que usam: “Nuvem Branca” – aplicado quando algum cliente inesperado passa por seu ateliê e leva tudo que está produzido e exposto, os deixando sem peças novas para vender.
É importante frisar a relação que o mestre Getúlio Damado tem com o território. Ele impacta diretamente o imaginário e estética do bairro de Santa Teresa, assim como é impactado pelas ladeiras, pessoas e bondes da região. Ser um artista que se destaca em um território de artistas é uma grande conquista. Isto se reafirma no carinho que os moradores têm com ele e toda valorização que seu trabalho alcança dentro e fora da região. Vemos que muitos artesãos desenvolvem grande simbiose com o seu território e isto é uma característica fundamental para o reconhecimento e sustentabilidade do fazer cultural, definidos pela potência artesanal de diversos locais no Brasil e exposto no fortalecimento do turismo, artes e identidade do território.
Texto por Laura Landau
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